A perda da minha mãe foi a dor maior que conheci.
Não pesou logo. Primeiro trouxe paz, porque a doença era feia e ainda se arrastou, mas, sobretudo, era um filme de terror que terminava – a iminência da sua morte e a minha impotência para a travar despertavam em mim efeitos inesperados, nem sempre edificantes. Tudo se mistura num desgosto: o golpe anunciado, mas sempre brutal, o choque da privação irreversível, o atroz alívio por tudo ter terminado antes dos limites de quem parte e de quem fica.
Perante o sofrimento dos nossos entes queridos, se a situação se arrasta, há momentos em que tememos não encontrar força e grandeza suficientes para continuar a prestar-lhes assistência com a mesma assiduidade, o mesmo amor, a mesma paciência. Por vezes, damos connosco horrorizados, a desejar que tudo termine, não para antecipar a morte de quem tanto amamos, longe disso, mas para não assistirmos ao espectáculo sempre desolador de vermos um sentimento que julgávamos descomunal e inextinguível a esgotar-se de um dia para o outro ou a transformar-se em impaciência e agastamento contra quem mais nos amou – a doença continuada dos nossos expõe, como um líquido revelador, os limites da nossa bondade e a penúria do nosso espírito de sacrifício.
O verdadeiro desgosto vem depois, com o passar dos meses, quando o remorso se dissipa, deixamos enfim de nos culpar, e um silêncio desconhecido e pavoroso se abate sobre nós, lançando-nos às feras da solidão irreparável e do desamparo literal. O sentimento mais fundamental da nossa vida, cuja disponibilidade, tida como eterna, nunca nos falhou, desaparece de um momento para o outro sem apelo nem agravo. Às vezes, horror dos horrores, é preciso que o outro morra para medirmos bem o valor, a dimensão e a importância do seu amor por nós. Até lá – pobres diabos ingratos – damo-nos ao luxo de o descurar, acreditando-o inesgotável e imorredouro.
Felizmente, o luto vai-se modificando e, dois ou três anos depois, é a vez de um remorso de sinal contrário nos visitar: a dor imensa que nos causou a perda da pessoa insubstituível vai-se esbatendo naturalmente, transformando-se, pouco a pouco, sem quase nos apercebermos, em melancolia, em filosofia, em poesia, em saudade. Foi assim que sofri a morte da minha mãe, a quem um cancro levou aos 86 anos. Andaria sobre o fogo para a reencontrar uma vez mais, apertá-la e enchê-la de beijos, rir-me com ela de certas suspeitas confirmadas, mas, ao fim de 12 anos, aprendi a viver sem ela e a alimentar-me da sua recordação.
No entanto, nem toda gente é assim: há quem fique o resto da vida chorando os seus mortos e não chegue a recuperar do desgosto. Não me refiro à perda súbita de um filho, cuja dor ou a culpa estilhaçam qualquer um, mas à morte de pais octogenários ou nonagenários, cônjuges, familiares ou amigos. Por vezes, percorrendo as redes sociais, deparo-me com pessoas, muitas delas jovens, confessando que depois da morte dos pais ou do marido ou mesmo de filhos adultos a vida perdeu todo o sentido. De tal forma que chego a indagar-me sobre se não serei mais insensível do que elas por ter aceitado ‘tão bem’ a morte dos meus.
No mês passado, a Organização Mundial de Saúde trouxe alguma luz sobre o tema quando, em comunicado à imprensa, incluiu a “desordem do luto prolongado” na lista dos distúrbios mentais, afiançando que o pesar pela morte de alguém pode tornar-se uma doença crónica se eclodir na alma de alguém com uma sensibilidade carente, ansiosa, vulnerável ou histérica, sem defesas para se prevenir do choque e encontrando no luto – quem sabe? – uma desculpa para a negação do exercício de viver. Foi na senda desta discussão, aliás, que pela primeira vez ouvi falar de “luto patológico”, expressão que constitui uma boa síntese e pode ajudar a compreender melhor quem o sofre e nos parece um tanto dramático ou fiteiro. No luto, o que é natural no momento da perda ou nos primeiros tempos pode gerar problemas de saúde física e mental se se arrastar por tempo demasiado: insónia, sonolência diurna, sensação de desânimo e de falência, desinteresse pela vida e pelas pessoas, sendo os sintomas semelhantes aos da depressão e ansiedade.
O transtorno do luto prolongado pode ocorrer em qualquer idade, embora o conceito de morte seja diferente para cada faixa etária, dependendo do grau de desenvolvimento pessoal de cada um. Nas crianças, por exemplo, a dor da perda pode estar escondida entre a raiva, o inconformismo, a negação, e, em caso de perfis mais problemáticos, a culpa.
Ainda sobre o luto, termino com uma pergunta: será que a aparente frieza ou mesmo indiferença com que, cada vez mais, recebemos a notícia da morte de outras pessoas, e que tanto nos escandaliza, se deve à comparação com a intensidade dos nossos lutos maiores? Ou seja: depois da perda devastadora de uma mãe ou de um filho, que outras nos farão ainda soçobrar?
Para a semana há mais.