Em criança, ninguém ligava às minhas queixas de saúde. Tinha pé chato e as minhas amigas com problemas nos pés calçavam sapatos ortopédicos e usavam palmilhas especiais. Era um tema prosaico de mais para entusiasmar os meus pais, que me compravam sapatos bonitos, mas baratos.
Também cuspia sangue. Perdoem, não há uma maneira elegante de dizer isto. Um médico falou em hemoptise e, perante o total alheamento dos meus pais, acabei por me contentar: era também do que sofriam as grandes heroínas românticas dos livros, com amores proibidos ou não correspondidos, e eu tinha sempre alguém por quem sofrer.
Ao nascer, fui tirada a ferros, o que me espalmou as costelas do lado esquerdo e me projectou as do direito, desfeando o meu colo alvíssimo: os colares ficavam, e ainda ficam, tortos. Um dia, ao auscultar-me, um médico assustou-se: “Calma, o que pode ser alarmante nem sempre é grave!” Ri-me. Os meus pais nunca abordaram este problema, perceptível em fato de banho ou decotada. Lá em casa era assim: se não se falava de uma coisa, era porque não existia. Fui obrigada a relativizar e não sofri nunca de complexos. Nem perdi casamento.
Somo a isto um diagnóstico de glaucoma. A minha avó paterna morreu cega, o meu pai e a minha mãe morreram cegos. Na melhor das hipóteses, talvez deixe de ver o que me incomoda.
Sem querer, repeti o padrão com os meus filhos: “Estás constipado? Bem feito. Quem te manda andar à chuva sem casaco?” “Estás nervosa? Tens dois trabalhos”. Felizmente, sempre souberam converter esta desvalorização em humor, que é, como sabem, uma arma poderosa: só ele pode salvar-nos da tragédia de uma rejeição, um adultério ou uma depressão, se os conseguirmos parodiar devidamente.
A minha filha, quando qualquer problema lhe afectava a saúde e se deparava invariavelmente com o meu desinteresse, contava aos amigos: “Ficava tão chocada com a indiferença da minha mãe perante as minhas queixas que o sintoma recolhia, humilhado.”
Com os netos, o mesmo: se ficam comigo alguns dias e têm febres altas, entorses ou feridas feias, não faço nada do que vejo actualmente: entrar em pânico e correr às urgências. Trato-os à antiga e nem sequer aviso os pais para não os ralar. É um risco, sim, mas ir ao hospital também.
De remédios, tomo o trivial: anti-depressivo, anti-histamínico e vasodilatador, além de um terço de comprimido para dormir. Quando, todas as noites, separo os remédios para o dia seguinte, imagino-me de bata branca, desejada por grandes psiquiatras e cirurgiões, privilégio desde sempre reservado a enfermeiras.
Soube que existe um exame que pode dizer-nos, com segurança, se acabaremos ou não com Alzheimer, e vou fazê-lo; mas desconfio que já o arrasto desde miúda. Não sei bem explicar, fui programada de forma diferente. De vez em quando desprendo-me do corpo e não sei onde estou nem percebo o que me falam. Não me foco e, quando parto para outra dimensão, sobrevoando ninhos de cucos, regresso confusa. São destacamentos temporários que me assaltam, em regra, em discursos públicos ou a fazer rádio. Mas não só: o meu irmão, quando me vê com estas ausências, e percebe que não estou a ouvi-lo, não se ensaia e bate palmas sonoras para me trazer à realidade. A Marta, quando me perguntava qualquer coisa e me sentia distraída, dizia: “Mãe, fui abusada na escola”. E lá aterrava eu à bruta, perguntando em pânico “Que é que disseste?”, enquanto ela se desculpava do susto que me pregara: “Estou há um quarto de hora a pedir dinheiro para o passe e a mãe não reage”.
Enfim, os únicos riscos que me esperam são os que não espero.
Às vezes indago os meus amigos sobre o que pensam que os levará. A maioria diz “cancro”, agoirada por tanto caso próximo. Eu vaticino: Alzheimer ou ossos. Mesmo hoje, a escrever, nunca paro por falta de inspiração, mas por dores nas costas excruciantes. Quando me estreei, já tarde, aos 35 anos, escrevia durante dez horas seguidas e as pausas que fazia eram para me alimentar precariamente; agora interrompo de meia em meia hora, contrariada, para esticar as costas e enganar as dores.
Resultado: o pé chato e a assimetria da minha caixa torácica, a que os meus pais nunca ligaram, será, provavelmente, o que me impedirá um dia de escrever e me atirará para uma cama daqui a uns anos. Não os culpo. Aturarem-me foi bem pior e começo a estar farta de escrever.
Para a semana há mais.