O mundo está cheio de viúvas. As mulheres vivem mais tempo, e Portugal, onde o mar sepulta tantos maridos e o luto carregado as identifica, tende a romantizá-las ou a satanizá-las. Há, também, uma mística à sua volta que pode vir do desafio erótico expresso numa mulher enlutada ou da cobiça dos sem-escrúpulos.
A qualificação “viúva alegre”, atribuída às que vemos prontas a abandonar a virtude e a entregar os seus corpos ressacados a quem possa satisfazê-los, já inspirou duas óperas: uma, com esse mesmo nome, ao compositor austríaco Franz Lehár, e outra, mais antiga, ao alemão Händel, sobre Agripina, mãe de Nero e causadora de tantas intrigas para o instalar no poder que este acaba por mandar matá-la.
Na literatura, as musas são incontáveis. Em ‘A viúva e o papagaio’, de Virginia Woolf, a protagonista descobre uma fortuna inesperada com a ajuda da sua ave palradora. Em ‘A viúva do enforcado’, de Camilo, ela vive o tormento de um segundo amor que, como o primeiro, vem a revelar-se fatal. Machado de Assis tem duas viúvas célebres: Lívia, personagem principal de ‘Ressurreição’, e Fidélia, a quem chamam de viúva Noronha e é representada no seu último romance, ‘Memorial de Aires’, que aborda com genialidade o patriarcalismo e seus terríveis efeitos na vida das viúvas. O primeiro livro de Saramago chama-se ‘A viúva’ e conta a história da ribatejana Maria Leonor, que chora a morte do marido e, simultaneamente, se culpa por uma nova relação sabotada pelas conveniências. Os enredos nem sempre são trágicos: ‘A viúva imortal’, de Millôr Fernandes, é uma das grandes comédias do teatro brasileiro.
Nas novelas da TV, todos se lembram da sensual Porcina, de ‘Roque Santeiro’, e de um marido que regressa da morte para se juntar à sua viúva e ao amante desta, em ‘Dona Flor e os seus dois maridos’, de Jorge Amado.
O interesse financeiro e a cobiça sexual que inspiram são motivos de lástima, mas também de pavor. A ‘viúva negra’, uma aranha de picada letal que devora o macho após a cópula, é metáfora para mulheres que matam os maridos por ciúme ou vingança ou, ainda, para se apropriarem das suas fortunas. E não só: vemos constantemente jovens a casarem-se com pares de idade avançada com o intuito raramente assumido de virem a herdar as suas fortunas.
Mas a realidade é mais sombria: habituadas a servir maridos e filhos durante uma vida inteira, e sem carreira profissional que as sustente, a maioria, com pensões de viuvez exíguas, passa a viver precariamente. Lembro-me das minhas avós, ambas viúvas de homens proeminentes, a aguentarem-se com dificuldades: uma, forrando escovas e caixas que vendia às amigas, outra, subsistindo à custa de letras para fado e da venda de quadros de flores que ela mesma confeccionava – como sobreviveriam as mais modestas?
Na Bíblia, onde mais do que uma parábola lhes é dedicada, Jesus ressuscita o filho de uma viúva para que a sua mãe não perca o sustento.
A ONU celebra, desde 2011, o Dia Internacional das Viúvas, a 23 de Junho, para sensibilização da sua frágil condição em todo o mundo, com perda de direitos e de uma vida digna. 10% das 258 milhões existentes em todo o mundo sofrem de pobreza extrema, violência e discriminação. Em muitos lugares, é mesmo um castigo. Na Índia, durante séculos, eram obrigadas a rapar o cabelo, a vestir sari branco para serem de imediato identificadas e impedidas de dirigir a palavra a crianças ou a outras mulheres. No mundo islâmico, são conhecidas as torturas e os maus-tratos.
Mas, mesmo sem discriminação, a dor da reconstrução social da identidade de alguém que viveu mais de meio século com outra pessoa e, de uma hora para a outra, se vê privada da sua companhia, atinge um grau severo, espatifando a vida do sobrevivo e não se resumindo aos impactos emocionais e psicológicos – é uma catástrofe que afecta todas as funções da sua vida.
Felizmente, o termo “viúvas” pode ter outras representações no imaginário das pessoas. Em Portugal, é como se chamam certos doces conventuais originários de Braga feitos pelas irmãs conserveiras do extinto Convento dos Remédios e cujo nome não era dedicado a quem os confeccionava, mas às viúvas a quem as freiras cediam as vendas como forma de auxílio financeiro. Sabiam a ovos, a amêndoa, a canela e a flor de laranjeira, e, para a autora destas linhas, passa a ser este o cheiro das viúvas, e não a dinheiro, a sexo, a ganância ou a feitiço – Santo António as recase a todas, com a graça de Nossa Senhora!
Para a semana há mais.