Maça-me, repetidamente, não conhecer os olhos de Pedro Abrunhosa. Desde que gravou o primeiro disco, em 94, que os óculos dele me enervam. Senhores: como pode um cantor que não é cego privar o público, e mais do que esse, os admiradores, do seu traço identitário mais vulnerável? É marketing, claro, e esta bizarria torna-o inconfundível; mas é triste. O artista tem direitos, mas o público também, e uma relação assim é desleal: mostramos a alma, ele não. No Facebook, sempre que me pedem amizade e deparo com uma concha ou um poente a substituir a foto de perfil, recuso sempre. Exijo ver a cara e, sobretudo, a coragem de a mostrar. Pedro, Pedro, fica a doce sugestão: e se fosse um dia o nosso olhar?
“Não sei” é uma expressão majestosa em vias de extinção, como o atum azul ou o elefante asiático. (Entre nós, as pessoas têm mais medo de parecer ignorantes do que criminosas, já repararam? Os literatos, então, vivem permanentemente à beira do colapso temendo que alguém os apanhe em falta.) Só os mais broncos, que não sabem, sequer, que não sabem, dizem “não sei” sem desconforto aparente. É uma liberdade, uma independência, uma segurança, um direito que agiganta quem o usa pela tranquilidade com que admite as suas sombras culturais, ciente de que ninguém pode saber tudo ou estar permanentemente a par das novidades, sob pena de se tornar não um intérprete ou criador da cultura, mas um daqueles alunos marrões que tudo sabem e a quem falta o principal: ideias! Lembro o meu pai na TV a falar de filosofia de uma forma preclara e de um jornalista pretensioso a indagá-lo sobre uma série de nomes de intelectuais franceses, todos neófitos. A cada menção, António Quadros perguntava, sorrindo à perplexidade: “Quem?”, para admitir logo a seguir “Não sei quem é”. Era miúda, mas aquele “não sei” era tão régio que me orgulhava! Como se, sem intenção, tivesse poder para transformar em larvas todos aqueles candidatos à imortalidade! Ao mesmo tempo interrogava-me, assustada: quantas coisas terei um dia que saber para responder “não sei” com esta naturalidade toda, sem correr o risco de ser desonrada publicamente, desclassificada por ignorância? O meu pai respondia assim, mas eu ouvia outra coisa: “Sabe? Tive a sorte de ler ‘Le soulier de satin’, de Claudel, ‘Os anões’, de Harold Pinter, os 154 poemas de Kavafis e os 8 livros de Albert Cossery, o profeta egípcio do prazer e da preguiça; de ver ‘O Sétimo Selo’, do Bergman, o ‘Pierrot, le Fou’, de Godard, e ‘O grito’, de Antonioni; de conhecer as cores de Giotto, de me emocionar com o teatro nô, de me abismar com os voos de Nureyev, de ouvir as óperas de Wagner em Leipzig, onde nasceu, de reconhecer o soprano absoluto de Maria Callas, de ver Shakespeare num anfiteatro de Atenas, de acampar na juventude em Corinto, Micenas e Epidauro. Confesso: ainda não tive tempo de conhecer os seus amigos, mas não fique triste.”
Um dia, numa festa concorrida mas tensa, que tardava em animar-se, quebrei o gelo lançando uma questão indecorosa: “Com a facilidade de relações que há hoje, por que razão continuam os homens a pagar para ter sexo?” Atónita, a falange masculina estremeceu. Uns tossiram, outros olharam de esguelha, mas, prudentemente acarinhados, acabaram por partilhar o supremo júbilo que consiste em não atender uma mulher, no dia seguinte, perguntando ao telefone: “Então? Que queres fazer hoje?” Perante isto, ‘I rest my case’. E sim, generalizo; infelizmente, há temas que ainda podemos generalizar.
Vi finalmente o documentário de 2008 ‘The Queen and I’, disponível na Netflix, sobre a entrevista a Farah Pahlavi, nascida Farah Diba, viúva do falecido Xá da Pérsia, pela iraniana Nahid Persson Sarvestani, realizadora de sucesso refugiada e radicada na Suécia, antiga comunista que começa por conspirar contra a vida do Xá e acaba sendo perseguida por ‘Ayatollah’ Khomeini, que, aliás, manda executar o irmão dela, de 17 anos. Espantoso, sobretudo, o modo como o comportamento da cineasta, sempre presente no filme, se vai alterando, totalmente corrompido pelo carisma, o charme e a singularidade da imperatriz. E não só: também pelas mordomias de que beneficia durante as filmagens em Paris: não disfarça o atordoamento que lhe causam os ambientes onde roda nem o motorista e o Mercedes que partilha com a entrevistada. Chora na campa da filha do Xá e entusiasma-se com os conhecimentos travados com os idólatras do ditador. Mais: todas as perguntas difíceis que levava para fazer à compatriota, sobre os abusos de poder durante o governo do marido, morrem no caderno, até ao ponto de duvidar do seu carácter, confessando em directo a clivagem que lhe causou a viúva. No fim, é ela a ter pena de se despedir de Farah, e não o contrário. Recomendo vivamente a espantosa lição de natureza humana: estamos lá todos.
Para a semana há mais.