Passamos a vida a ouvir conselhos de saúde a amigos, médicos e hipocondríacos, um dos quais no tom doutrinário de uma suma teológica: FAZ EXERCÍCIO! Arrogante, como só os humanos sabem ser, não liguei durante anos. Não por me presumir invencível, mas porque a ginástica talvez seja a actividade do mundo que mais me maça, logo a seguir a lavar frigideiras. Os movimentos em chão duro, partilhados com uma legião de neuróticos como eu, a humilhação de nunca superar o professor, a monotonia dos exercícios, o esquecer-me recorrentemente de respirar como eles querem e levar descomposturas.
No entanto, entre tantas sugestões, há sempre uma que, um dia, nos bate mais forte. Esta foi apenas uma frase que retive, de lógica inquestionável: “Os velhos magoam-se porque não têm músculo”. Não sei a razão, porque a mente é um mistério, mas aquela banalidade, de repente, produziu mais impacto em mim do que todas as estopadas moralistas anteriores. Essa e outra da minha filha: “A melhor coisa que os pais podem fazer pelos filhos é cuidarem de si mesmos.”
De um momento para o outro, imaginei-me a carregar de trabalho quem não tem culpa da minha indolência e não achei justo. Não se pense, todavia, que estive sempre parada: ando a pé 2,5 km por dia, enquanto passeio os cães, para desenferrujar, e durante todos estes anos fiz natação, pilates, ioga e até karaté, este último mais para me fazer engraçada. Mas a rotina tem sido esta: compro os melhores equipamentos, compareço no primeiro dia tremendo de entusiasmo, deserto ao fim de duas semanas intensamente aliviada.
Resumindo: resolvi inscrever-me num ginásio de máquinas cardio e, pasme-se, já lá vão 15 dias e a alegria é a mesma, se não maior com o passar dos dias.
Para já, não é uma actividade de grupo, que detesto sobre todas as formas, mas individual. Depois, como fui entendendo o funcionamento das máquinas e da colocação dos pesos, já me safo sozinha e executo o meu périplo toda independente. Começo por 20 minutos de passadeira, passo ao remo, a seguir empurro pesos com as pernas e com os braços, e, no fim, ainda subo para um tapete que me abana da cabeça aos pés, para relaxar.
Ao mesmo tempo, aterra-me ver toda aquela rapaziada que está ali também para criar músculos, como eu, mas até à ruptura dos tendões, soltando uivos ursídeos sempre que um haltere lhes dá luta.
A bem dizer, já desisti de sondar o que se passará a norte daqueles aglomerados de músculos bem assertoados, presos uns aos outros por sólidas dobradiças. A aparência que os distingue é tudo menos humana. As proporções clássicas dos corpos das estátuas gregas também são exacerbações da figura humana, mas salientando sempre a fragilidade, característica indefectível da nossa condição; nelas, como em toda a Arte, a qualquer medida corresponde uma atitude espiritual. Não parece ser o caso dos nossos body-builders: com corpos daqueles é impossível assumir uma atitude humanizada. As cabeças não se distinguem no meio dos ombros monumentais, o tronco desaparece numa cordilheira de protuberâncias musculares, as mãos ficam reduzidas à proporção de apêndices minúsculos na extremidade dos antebraços em regra tatuados com cobras e lagartos.
Por vezes, acima desta imensa massa muscular, espreita um palminho infantil e imberbe. Não é de estranhar: poucos adultos se sujeitariam a abdicar da masculinidade suficiente para vender a alma a tanta arroba muscular.
– Fazem isto por razões de saúde? – perguntei ao PT que me introduziu às máquinas.
– Não. É quase tudo por razões estéticas.
Não tocam em álcool, nunca fumaram, interessam-se mais por proteínas do que por aventuras, e muitos submetem-se sem traumatismo aparente a humilhantes dietas de barras e mistelas diluídas em bebidas isotónicas, hipotónicas e hipertónicas. Mas, como não podia deixar de ser, a consciência a que corresponde tamanhos músculos fica-se, muitas vezes, pelas dimensões do haltere e do balneário. Os homens gozam de mais prestígio entre os pares do que entre as mulheres, e estas, em menor número, mas a multiplicarem-se nos ginásios de dia para dia, conseguem traseiros tão torneados e rijos que tornam a epopeia dos Lusíadas num passeio no parque.
Mas com que direito diria mal deles? Acho estes novos hércules bizarros, mas é inteiramente recíproco. Quando os contorno para alcançar a minha máquina, atravessando névoas de suor e de hormonas volatizadas, quase os ouço dizer: “Que fazes aqui, imunda criatura, em vez de tomares conta dos nossos filhos e netos, enquanto podes?”
Não sabem, mas é precisamente o que estou a fazer: a tomar conta dos meus filhos e netos.
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