O movimento ME TOO tem-se manifestado um pouco por todo o lado, embora com menos expressão em lugares onde o assédio foi quase um destino e a origem das vítimas não favorecia a denúncia. Refiro-me às unidades fabris e a todas as empresas com mão-de-obra feminina, onde histórias sobre o comportamento de quem lhes paga ou controla chegam até hoje. Patrões que faziam filhos a operárias e que pagaram, ou nem isso, pelo seu silêncio, camponesas violadas por feitores, criaditas desfloradas pelos senhores das casas e despedidas como rameiras, indígenas quase crianças usadas e abandonadas por soldados, para não falar do direito de pernada dos reis que dantes se antecipavam aos namorados e maridos por direito escrito ou da violência sexual contra as mulheres no tempo da escravatura. Histórias que causaram a desgraça e a desonra das vítimas e das suas famílias e forneceram aos artistas de todo o Mundo material novelístico suficiente para atufar uma biblioteca.
No nosso século, como sabem, a indignação serôdia partiu do hashtag ME TOO nas redes sociais, denunciando o comportamento sexual dos homens em situações de poder e significando “eu também fui vítima de assédio”, lançado por uma activista social americana em 2006 e, anos depois, em Outubro de 2017, viralizada no Twitter pela actriz Alyssa Milano.
É tudo muito recente, mas depois das estrelas de cinema, que ainda hoje, por preconceito, geram suspeitas aos mais machistas, chegou a vez do exército, do desporto, da música, da universidade, da Igreja, da academia e dos meios literários, ou seja, de todo o espectro da sociedade, tendo desmascarado desde o alarve produtor Harvey Weinstein ao marido intelectual francês e supostamente sofisticado de um membro da Academia Sueca, por culpa de quem o Prémio Nobel da Literatura não foi atribuído em 2018.
Por ter sido deficientemente noticiado entre nós, vale a pena rever os contornos deste caso: Jean-Claude Arnault é um intelectual francês que chegou à Suécia afirmando ter um curso da Sorbonne quando tinha apenas o de electricista, e se foi infiltrando na elite de Estocolmo, tendo chegado ao mais alto patamar do poder cultural do país ganhando prémios de prestígio e casando com Katarina Frostenson, académica, tradutora e poetisa com pouca popularidade, mas deificada entre os literatos, uma entre os 18 membros permanentes da Academia Sueca, plêiade até à data venerável e acima de qualquer suspeita.
Graças a este enlace estratégico conseguiu formar, com a mulher, um fórum artístico com poderes absolutos de enorme peso cultural, onde decidia quem expunha, quem palestrava, quem era ou não convidado para eventos, quem ganhava prémios ou recebia boas críticas, incensando os elementos que ele bem entendia e rejeitando as mulheres que se lhe negavam ou lhe faziam frente, trabalhando com fundos do Estado sem qualquer supervisão e o aval passivo de toda a Academia Sueca.
As primeiras queixas não surtiram efeito, “embora toda a gente soubesse”, porque a Academia se acobardava e a mulher legítima desmentia, desencorajando a denúncia das vítimas, sobretudo estudantes de Arte que temiam afrontar a Instituição e ver as suas criações para sempre canceladas pelo cânone.
À pala disto, chantageou e abusou de dezenas de artistas e colaboradoras, dentro e fora dos seus domínios: é verdadeira a história de ter encontrado uma vez Victoria da Suécia numa recepção e de a ter saudado com uma festa nas costas tão abissal que chegou ao traseiro, paralisando a princesa em choque e não passando despercebido ao segurança que, segundo relatos, lhe deu um encontrão para o afastar – triste, não é?
Acusado de assédio e violência sexual por 18 mulheres, foi proscrito da Academia, mas condenado apenas a dois anos de cadeia, o que dá fé da miséria humana no seu pior. E porquê no seu pior? Porque quanto maiores são a inteligência e a sabedoria, mais indesculpáveis deveriam ser estes comportamentos. Aliás, dir-se-ia, sempre que um humano com cultura se comporta como um australopiteco é como se um pássaro deixasse de cantar.
E há ainda aquele sentimento decadente, mas sobrevivo na alma de muitos, associável ao machismo tanto de homens como de mulheres: o crime não é pecado, mas conhecimento, e o génio é atenuante para todos os crimes. Ontem como hoje, Caravaggio e Cellini foram perdoados dos homicídios que cometeram, Roman Polanski só esteve preso 47 dias por ter abusado de uma menina de 13 anos, e, entre nós, o poeta Luís Pacheco, que toda a vida se comportou como pedófilo e foi protegido por figuras proeminentes do nosso escol, não descontou nada ao seu mito, pelo contrário, quando a sua vida depravada chegou ao domínio público.
Já são muitos pássaros a deixar de cantar, não são? Um silêncio macabro e suficiente, talvez, para a poesia começar a ressentir-se e a deixar de voar como voava.
Para a semana há mais.