Um dia a Pousada de Estremoz encomendou-me uns textos e pagou em espécie: quatro dias em regime de pensão completa. Podia ter levado namorado, um filho ou uma amiga, mas lembrei-me: “É desta que levo a minha mãe!”. Ela enviuvara há uns anos, eu divorciara-me há poucos meses, de modo que uma oportunidade destas, fora da rotina familiar, era para ambas um programa de rachar.
Toda a vida fiz patuscadas com ela: escapadas à Praia das Maçãs ou à Foz do Arelho, almoços que fazia questão de me oferecer, e, mesmo quando a acompanhava aos médicos, acabávamos sempre a petiscar qualquer coisa e a criticar o mundo e as vontades, que era um vício inevitável entre pândegas como nós.
– Mãe, o que acha do João?
– Um lambe-botas.
– E da Mariana?
– Coitada, engordou imenso. Está uma camilha.
(Não éramos santas, mas pelo menos não fingíamos que éramos.)
– E que me dizes tu do tio Augusto ter deixado a mulher por uma sobrinha?
– Digo-lhe que foi uma lição para a tia Dorinha, que era uma chata de galochas e o perseguia com recriminações constantes.
– Sim, mas uma sobrinha…
– É indiferente, mãe. É só sobrinha dela e, pelo menos, anima um bocado Lisboa!
– E a diferença de idades, não te choca?
– Não me choca.
– Estás muito moderna…
A minha mãe adorava a mesa! Tinha um gosto diferente do meu, à época, que, com os anos, se foi esbatendo. Agora sou eu a gostar de joaquinzinhos com açorda, mas naquela altura era parva e apreciava bifes com natas e gratinados.
Foi no verão e mil vezes revivo aqueles dias.
Quem se ocupava da gastronomia era o grande chefe Virgílio Gomes, de modo que nunca nos atrasávamos para jantar e para almoçar. Já viajei muito desde então, mas não me lembro de tanta excelência sem falhas nem de uma doçaria tão real. E depois o resto: a toalha imaculada, os cristais reluzentes, os guardanapos rijos de goma.
Dormíamos no mesmo quarto, que era grande e dava para a piscina onde nadávamos sem testemunhas.
Uma vez, no fim do dia, um episódio emocionou-me. Despia-me para dormir, sentada na sua cama, e, depois de passar a mão pelo meu braço e de o apalpar com ternura, suspirou e disse assim:
– Que inveja a tua pele!
– Disse-o com a generosidade de alguém que perdera o que agora reencontrava na filha, de modo que se alegrava. E apertando-me a carne rija:
– Tão fresca a tua pele, é extraordinário!
Numa manhã, tive a ideia estapafúrdia de a levar ao El Corte Inglés de Badajoz, a uma hora de caminho: Arcos, Borba, Vila Boim, Elvas, e já lá estávamos, sempre rindo, discutindo, sorvendo a paisagem.
Uma nota a quem me lê: sou insuportável nas compras e a minha mãe já não era nova. Andava como eu ando agora, despachada aos 68, mas ao fim de certo tempo de caminhada começava a cansar-se. Resultado: depois de hora e meia de escadas rolantes para cima e para baixo, comigo fascinada com as novidades como se estivesse no Louvre – “Mãe, veja isto, mãe, veja aquilo” – capitulou:
– Ritinha, acredita em mim: mais dois passos e desmaio redonda.
Perante a possibilidade de abandonar aquele lupanar comercial no auge do meu furor consumista, tive uma ideia: “Mãe, o que acha de eu pedir uma cadeira de rodas para si, e a mãe assim pode ver tudo e escolher à vontade como uma rainha?”
Primeiro riu-se e disse “Não estás boa da cabeça”, depois confessou que não tinha lata para se fingir debilitada e, por fim, como era tão doida como eu, lá se prestou.
Estivemos naquele furor consumista durante mais de três horas, até eu própria me sentir estafada, comigo a conduzir a cadeira de uma forma alucinante, e, no fim, saímos de lá com tantos sacos que tiveram que nos ajudar à entrada do elevador que dava acesso ao estacionamento.
A minha mãe. Andaria sobre o fogo para repetir este programa com ela em Londres, em Paris, no Martim Moniz. Mas morreu e só a revejo em sonhos espaçados, quando, uma vez por outra, a minha mente condoída a traz de volta.
No fim da viagem, quando a deixei em casa, perguntei:
– Gostou, mãe?
Respondeu de lágrimas nos olhos:
– Foram os dias mais felizes da minha vida, acreditas?
– Que exageeeeero, mãe! – trocei eu. – Fartou-se de viajar com o pai, percorreram a Itália de alto abaixo…
Agarrou-me no braço e abriu aqueles olhos azuis-esverdeados, que não mentiam:
– Ritinha, estou-te a dizer.
Anos depois, cruzei-me com o Virgílio Gomes numa sala qualquer e disse-lhe o quanto lhe estava grata. E só agora, depois de todos estes anos, com a idade que ela tinha nessa altura, é que percebo que também foram os meus dias mais radiantes, do princípio ao fim, sem desfalecimentos nem um único momento de tristeza. Juro-vos: pudesse eu ressuscitar uma pessoa em troca de perder um braço e, Deus me perdoe, não hesitaria.
Para a semana há mais.