Tem graça que ouvi há dias entoar um velho faduncho de fazer gemer as pedras da calçada, muito popular pelas vielas sórdidas dos anos Setenta ou em versões pícaras de estudantina. Abre com um verso pungente (“Andava a desgraçadinha no gamanço”) para desenrolar um chorrilho de infortúnios em glosa sobre uma pobre mulher que roubava para alimentar os filhos tuberculosos. Em Dó Menor.
Silvino Potêncio, o autor deste edificante choradinho, pôs a tónica no gamanço como último recurso da miséria desesperada. Andar no gamanço, contudo, pode ser muito mais do que uma necessidade: tomado com a metodologia apropriada, chega a alcançar os rigores de uma ciência. Elevado à sua mais sublime expressão, é sem dúvida uma arte.
A arte de gamar é muito antiga – talvez tão velha como o próprio homem social. Ao longo da história, no entanto, registam-se períodos em que o gamanço atinge picos verdadeiramente sísmicos. No século XVII, por exemplo, a roubalheira estava tão em voga que o jesuíta Manuel da Costa lhe dedicou um compêndio – Arte de Furtar – no qual declina algumas das principais modalidades desta engenhosa especialidade interactiva.
A fazer fé no autor, em 1652 andaria toda a gente a gamar por estes Reynos de Portugal, com a única excepção de Sua Majestade Sereníssima o Senhor Dom João IV, que já não precisava. A Arte de Furtar transborda de pequenos, médios e grandes casos de gamanço, surpreendentemente parecidos, nesse longínquo século XVII, com as variantes nossas conhecidas dos dias de hoje. Os negócios por baixo da mesa com o Estado, os empregos de favor, a cumplicidade premiando a incompetência, as ajudas de custo faraónicas, as indemnizações por serviços irreais – tudo isso lá está, com exemplos que mais parecem arrancados a 2023, salvo seja.
Nesse precioso alfarrábio o padre Costa invectiva “os Ministros del-Rey que hontem andavaõ a pé e hoje a cavallo”, esses que “medraraõ tanto em taõ pouco tempo”, que se “houveraõ como a rapoza no galinheiro” e que “metem tudo a saco”. Como diria o Dr. José Afonso dos Santos três séculos depois a propósito dos vampyros, “eles comem tudo e não deixaõ nada”.
Ao dar-me conta do avultado número de desgraçadinhos que andam hoje por aí no gamanço, coitados, sem sequer terem filhos tísicos para alimentar, consolo-me com a versatilidade artística desta nobre actividade que de dia para dia ganha mais profissionais, e cada vez mais qualificados. Roubalheira e ladroagem assumem, na nossa especiosa Língua, formas verbais de inegável vigor: gamar, sim, mas também fanar, abichar, mamar ou chupar, surripiar e subtrair, extorquir, esbulhar, desfalcar, espoliar, desviar, rapinar, sonegar, palmar ou abafar. Na forma pronominal, então, o gamanço atinge alturas poéticas de grande intensidade: abotoar-se, governar-se, locupletar-se e agasalhar-se são apenas exemplos líricos do velho coçar para dentro.
Já não sei a que propósito vinha tudo isto. A idade não perdoa…