DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

A “ética republicana”

Na semana passada, no Parlamento, o primeiro-ministro referiu-se por três vezes a algo que designou por “a ética republicana”. Fiquei intrigado.

Sendo certo que se pronunciava no campo da política, António Costa queria referir-se, sem dúvida, a um determinado princípio, ou conjunto de princípios, que a percepção comum associa ao regime político republicano. ¿Engano-me?

Se não me engano, ao invocar aquela “ética” António Costa correu um enorme risco: o de chamar sobre si o contrário do que pretendia.

Vejamos.

O primeiro-ministro não invocou em seu auxílio uma ética republicana (o que poderia ter feito como dono e senhor do seu pensamento e da sua opinião), mas sim “a ética republicana”, fazendo pressupor que uma e só uma é inerente àquele regime político.

Ora muitos republicanos reclamaram e reclamam para si uma “ética”. Republicana seria a “ética” de Manuel de Arriaga, sim, mas igualmente republicanas seriam as “éticas” distintas (e em alguns casos bem discrepantes) de Afonso Costa, ou de Brito Camacho, ou de Machado Santos, ou de Sidónio Pais, ou de António Maria da Silva, ou de José Relvas, ou de Mendes Cabeçadas, ou de Gomes da Costa, ou de Oliveira Salazar, ou de Norton de Matos, ou de Quintão Meireles, ou de Craveiro Lopes, ou de Américo Thomaz, ou de Bissaya Barreto, ou de Franco Nogueira, ou de Adriano Moreira, ou de Mário Soares, ou de Álvaro Cunhal, ou de Ramalho Eanes, ou de Vasco Gonçalves, ou de Kaúlza de Arriaga, ou de Otelo Saraiva de Carvalho, ou de José Sócrates, ou de Passos Coelho, ou de André Ventura, ou até mesmo da pobre desempregada Alexandra Reis.

De resto, tão republicanos como o 5 de Outubro foram o regicídio, o “dente d’oiro” e os fuzilados de Outubro; republicanos foram igualmente o 28 de Maio, o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Cada um com sua “ética”.     

Havendo, assim, um número de “éticas” republicanas potencialmente igual ao número de republicanos, pois em cada cabeça mora uma sentença, só posso concluir que ou António Costa as considera todas iguais e as amalgama num batido de ideias da cor de burro quando foge, ou só valida uma delas, nessa se revendo e só essa exaltando. Neste último caso, fica-se na dúvida sobre qual “ética republicana” quer ele referir quando fala de “a ética republicana”: ¿a do conselheiro Albino Pinto dos Reis ou a do conselheiro Francisco Anacleto Louçã?

E ainda que pudesse responder, António Costa não ultrapassaria a contradição mais elementar ainda: a república é uma escolha política; a “ética” é uma virtude de ordem moral. Juntar as duas é tomar a nuvem por Juno. Isto mesmo ficou claro, horas depois de em vão ter invocado “a ética republicana”, quando a pessoa em nome de quem a invocava foi sumariamente demitida no telejornal pelo venerando Chefe do Estado, por ser “um peso político negativo”.

Como se vê, a Língua portuguesa é muito traiçoeira. E “a ética republicana” ainda mais.

Jorge Morais

Carta da Aldeia

Jorge Morais