Ilídio Fernando Torres do Vale goza os prazeres do luxuoso Qatar — onde se instalou em Agosto para treinar a Selecção de futebol sub-23. Parece que o técnico se tinha apaixonado pelas grandezas do Golfo Pérsico durante o Mundial de Futebol do ano passado e assim que conseguiu — assim que o chefe Fernando Santos começou a preparar a saída como selecionador nacional — lá fez as malas e partiu em direcção às arábias.
O trabalho não lhe tem corrido nada mal. A vitória na Taça Asiática sub-23, que começa em Abril do próximo ano e serve de qualificação para os Jogos Olímpicos de Paris 2024, é o maior objectivo do veterano (“veterano” é como a imprensa do Qatar em língua inglesa descreve Ilídio Vale). E, sendo assim, a notícia conhecida na semana passada era a última coisa de que o homem estaria à espera.
A incómoda notícia a que nos referimos implica que o antigo braço direito de Fernando Santos na Selecção Portuguesa de Futebol terá de pagar 323 mil euros à Autoridade Tributária. O Fisco entende que houve “abuso fiscal” quando, em 2016, Vale começou a trabalhar para a Federação Portuguesa de Futebol através de uma empresa. Ao invés de ter um contrato de trabalho — como aconteceu entre 2007 e 2016 — e de pagar impostos sobre o chorudo salário de quase 17 mil euros mensais, passou a empregado de uma empresa prestadora de serviços e apenas fazia a declaração de cerca de 1800 euros por mês. Logo, pagava impostos muito abaixo do que deveria, até porque era tributado em sede de IRC e não em sede de IRS.
Segundo o Fisco, Vale beneficiou destas vantagens fiscais abusivas através da sociedade IVRM, Gestão Desportiva Lda — criada em Setembro de 2016 com capital de 100 euros e que ainda se mantém em actividade. O Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), onde o técnico e a Autoridade Tributária aceitaram dirimir este conflito, veio agora declarar que houve mesmo “abuso fiscal”. Na semana passada o treinador foi notificado do acórdão do CAAD, escreveu o Correio da Manhã, e terá de pagar 323 mil euros de IRS relativo a 2016 e 2017, mais 3.600 euros de custas judiciais.
O desfecho já era esperado. Há precisamente um ano, o CAAD já se tinha pronunciado sobre um caso idêntico, que envolvia o próprio Fernando Santos, obrigando o agora ex-seleccionador a entregar nada menos que 4,5 milhões de IRS relativo a 2016-17 — por também ele ter uma ligação profissional irregular com a Federação Portuguesa de Futebol, através da célebre empresa Femacosa. Alegadamente, foi a própria Federação a propor ao ‘mister’, quando este lá chegou, em 2014, que criasse uma empresa para assim receber o salário.
Na Femacosa entraram cerca de 10 milhões em 2016-17, pagos pela Federação, mas o sócio-gerente Fernando Santos só declarou 70 mil (cerca de cinco mil euros mensais). Na prática, em vez de pagar IRS a uma taxa que rondaria 50%, o seleccionador pagava uns simpáticos 27% de IRC. Os quatro adjuntos de Fernando Santos à frente da Selecção — João Costa, Ricardo Santos e Fernando Justino — também recebiam pela Femacosa, segundo o Expresso. Só Ilídio Vale é que a partir de 2016 passou a ser remunerado via IVRM, Gestão Desportiva Lda.
Fonte próxima do processo, que pede para não ser identificada, diz ao Tal&Qual que o CAAD não classificou a situação de Ilídio Vale como “ilícita”, apenas como “abuso”, e o “abuso de formas não era considerado ilícito ao tempo dos factos”. O CAAD “fez simplesmente uma reconstrução da obrigação fiscal, como se a IVRM não tivesse existido, mas não considerou existir um ilícito”. O mesmo se aplica ao caso Femacosa.
Ainda assim, o assunto não está encerrado — muito longe disso. Por um lado, é quase certo que a Autoridade Tributária está a analisar à lupa rendimentos de outros anos dos antigos homens da Selecção, e a Segurança Social também investiga se lhe são devidos pagamentos em função das decisões do CAAD. Além disso, até hoje ninguém sabe se o novo seleccionador, Roberto Martínez, que entrou em Janeiro e tem vínculo até 2026, está em situação parecida às de Fernando Santos e Ilídio Vale. O presidente da Federação, Fernando Gomes, já disse publicamente que Martínez “tem um contrato de trabalho como têm todos os treinadores da Federação”, mas a afirmação é vaga e presta-se a várias interpretações. “Treinadores da Federação” não são apenas treinadores da Selecção.
Por outro lado, é cada vez mais evidente que uma bomba fiscal pode rebentar a qualquer momento. Se isso já era dado como certo no fim do ano passado, mais forte se torna perante o acórdão do CAAD no caso Ilídio Vale. Milhares de portugueses têm empresas para receberem dinheiro das entidades para as quais trabalham, em vez estarem vinculados com contratos de trabalho. Há, por exemplo, muitos comentadores televisivos nestas condições — e até altos responsáveis de alguns canais. E se o Fisco decidir espreitar todas estas situações, respaldado nos dois acórdãos do CAAD, que pesam tanto quanto sentenças de tribunal?
É certo que Fernando Santos não se contentou com a decisão do CAAD. Em Novembro do ano passado instruiu o seu advogado, António Lobo Xavier, para entregar um recurso junto do Supremo Tribunal Administrativo, para que esta instância compare o acórdão Femacosa com decisões de tribunais em casos semelhantes — o que até pode reverter as conclusões do CAAD. Além disso, Lobo Xavier entregou um segundo recurso, junto do Tribunal Central Administrativo Sul, para no limite o CAAD ser obrigado a repetir a arbitragem.
À hora de fecho desta edição ambos os recursos continuavam à espera de análise. Se Fernando Santos perder, aí é que a bomba fiscal rebenta mesmo — porque o Fisco passaria a ter via aberta para aplicar a todos os contribuintes o entendimento definitivo que passasse a prevalecer face aos antigos homens da Selecção.