Manuela Faria tem 70 anos e mora aqui há mais de 50. Tem uma das mais famosas mercearias da zona, a Abastecedora de Alfama. Um quadro com o Santo António abençoa-lhe o negócio que se vai fazendo com os vizinhos mas também com os estrangeiros que vão comprando pão, leite, queijo e fruta — para preparem os pequenos-almoços nas casas que arrendam para uns dias de férias em Lisboa. “O alojamento local foi a desgraça disto”, queixa-se a comerciante. “Correram com as pessoas que tinham aqui as suas raízes. Isto era uma aldeia autêntica, todos nos conhecíamos. Ainda é assim, mas muito menos, porque há menos gente daqui”.
Ela própria esteve prestes a ser corrida. A mercearia já ocupou os números 23 a 25 da Rua de São Pedro. Mas em 2017 foram lá medir-lhe as paredes. Poucos dias depois soube que o prédio tinha sido vendido e recebeu uma ordem de despejo. A custo lá conseguiu que a Câmara de Lisboa lhe cedesse o espaço onde agora tem o estabelecimento, logo no início da Travessa do Terreiro do Trigo, a dois minutos da antiga morada. Ao colo traz a neta, Madalena. A filha também foi vítima do sistema Airbnb. “Teve de sair da casa onde estava e foi realojada numa casa da Câmara, felizmente aqui em Alfama”. Menos mal. Há quem tenha ido para zonas periféricas da capital. “No princípio disto começar houve muitos que foram para Chelas”, conta Manuela Faria.
Santa Maria Maior, freguesia a que pertence Alfama, é a que tem o maior número de alojamentos locais em Lisboa. Alfama é mesmo o principal núcleo, com cerca de 450 unidades ao estilo Airbnb. Tudo se agudizou em 2012 com a chamada ‘Lei Cristas’, da ministra Assunção Cristas, que liberalizou o mercado do arrendamento e facilitou despejos. E piorou em 2014 com o programa ‘Reabilita Primeiro, Paga Depois’, que levou a autarquia então liderada por António Costa a vender casas municipais em leilão. “Muitas destas casas foram reabilitadas e passaram para o alojamento local”, explica a comunista Lurdes Pinheiro, antiga presidente da extinta Junta de Freguesia de Santo Estevão – no coração de Alfama – e que atualmente dirige a Associação do Património e da População de Alfama.
Ao calcorrearmos as ruas do bairro vamos encontrar Cecília Casal-Ribeiro, de 70 anos, que nos abre a porta de casa. Não tem qualquer vizinho num prédio de quatro andares. “Sou a única moradora, o resto das casas é tudo alojamento”. E queixas não faltam a esta que é também uma das últimas residentes de Alfama. “É barulho de dia e de noite. Ainda há uns dias tive de me aborrecer e dar uns pontapés na porta de cima, porque era meia-noite e tal e ainda havia festa”.
Cecília serve às mesas no Barracão, um conhecido restaurante do bairro. Mas já esteve no Flor dos Arcos onde por muitas vezes afinou a voz e cantou o fado. “Pediam-me e eu cantava, mas sempre de borla”. A casa de fado vadio desapareceu. “Aquilo foi passado a uns paquistaneses”, lamenta. Ela já teve de mudar de apartamento quatro vezes “por causa das rendas aumentarem muito”. “O mais curioso é que todas as casas onde eu vivi hoje estão em alojamento local”, conta.
Num prédio ao lado, sentada à porta, está Gracinda Santos, de 65 anos. Costuma vender ginja à soleira – uma tradição em Alfama – mas é uma mulher doente e tem andado pior. Anda recolhido o banquinho onde costuma expor os copos e as garrafas que lhe dão algum sustento. “Tenho uma incapacidade de 80% por isso não me podem meter na rua”, anima-se, apesar da desgraça. “Isso do alojamento local foi uma grande porcaria. Antigamente, isto era uma aldeia, dava-se a mão uns aos outros. Agora estou aqui sozinha e doente à espera de que alguém chegue e me vá buscar alguma coisa para a sopa”, queixa-se, enquanto puxa de um cigarro, o vício solitário que a ajuda a passar o tempo.
O casario por ali continua, entre ruelas e becos que se entrelaçam formando um labirinto. Há prédios bonitos e arranjados para turista arrendar ou estrangeiro comprar; há ruínas à espera de obras e que os filhos de Alfama tanto gostariam que voltassem a ser casas para os seus. “Levaram os nossos putos todos daqui e quando a Câmara arranja as casas já tem gente para cá meter. É quem eles querem, gente que vem de outros lados”, lastima Idalécio Almeida, vigilante do Elevador de Santa Luzia e residente em Alfama há mais de quatro décadas.
Este é um dos mais antigos bairros de Lisboa e foi poiso de aguadeiros e varinas. Ouviam-se por ali pregões e desgarradas que animavam as ruas. Havia um frenesi de mulheres a lavar roupa no grande lavadouro público do Beco do Mexias, hoje transformado em palco para atividades culturais, como sessões de fado.
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Tudo a preços para turistas
Idalécio Almeida é natural da Bica, um alfacinha de gema, mas apaixonou-se por uma mulher de Alfama e por aqui ficou. Casaram-se e tiveram filhos, mas todos foram obrigados a abalar nos últimos anos. Ninguém aguenta os preços que se praticam neste pedaço de Lisboa. “Malta nova? Os meus filhos foram-se embora porque não têm dinheiro para pagar uma renda em Alfama. Pedem 800 ou 900 euros por um T0. E a maior parte das casas estão todas para alugar aos estrangeiros”.
Idalécio pára para beber a bica na padaria que fica na encruzilhada entre a Rua de São Pedro e a Rua de São Miguel. É um dos poucos sítios onde ainda se consegue tomar um café a preços para portugueses. Custa 80 cêntimos, coisa rara perante o euro e meio que se bitola.
Também na padaria, metemos conversa com Etelvina Fernandes, de 81 anos. É mesmo filha de Alfama. “Nasci no Beco da Cardosa e vim morar para aqui para esta rua quando me casei”, revela-nos a octogenária. Aponta para a Rua de São Pedro e emociona-se quando recorda outros tempos. “Nesta rua era só varinas. Alfama era linda! Havia os pregões. Agora não temos nada”, entristece-se.
O prédio onde mora, relata, é um entra e sai de gente, o que lhe põe os nervos em franja, a ela e ao marido, antigo estivador “que está muito doente”. “Na minha escada só há duas vizinhas, de resto é tudo alugado a estrangeiros. Se me incomoda? Às quatro da manhã ainda estão eles para ali a dançar. Muitas vezes tenho de ir bater às portas e fazer sinal para estarem sossegados”. Lá fora, ouve-se o trilhar das rodinhas das malas de viagem na calçada. Etelvina dá uma espreitadela pela porta da padaria. “Isto não se admite. Não há quem meta mão nisto!” Também os seus filhos tiveram de abandonar o bairro. “A rapaziada nova foi toda embora. A minha filha, quando se casou, foi para o Cacém com o marido, que também é daqui”.
“Fui pesada na balança do peixe”
Diogo Mendes tem 18 anos e é um dos poucos jovens do bairro. Ainda vive com a mãe, apesar de já ser pai de um bebé de ano e meio, o Kevin. “A minha namorada mora em Chelas com a mãe e o menino. Não cabemos todos em casa da minha mãe”, lamenta o rapaz, funcionário da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. “Malta da minha idade não tem dinheiro para morar cá. Até tenho medo de que o senhorio nos mande embora”, desabafa. “Já aconteceu a pessoas amigas”.
Apesar de muito jovem, Diogo sabe falar badoncali, ou ‘calão de Alfama’, um dialeto que só os locais entendem. E mesmo assim não são todos. Esta forma de falar, que troca a ordem normal da sílabas e põe sempre um ‘i’ no fim das frases, nasceu das bocas dos estivadores quando não queriam que os outros entendessem o que estavam a dizer. Foi passando de geração em geração. Diogo aprendeu na rua com amigos mais velhos. Por agora, ainda pode afirmar: “Eu bador mim em Albadama alfi e badô si badi feli”, que é como quem diz “Moro em Alfama e sou feliz”.
Mais adiante, Fátima Graça, 58 anos, tem uma pequena banca montada onde vende ginginha à vontade do freguês. “Ei si!”, atira, quando o Tal&Qual lhe pergunta se também fala o calão. “Sou de Alfama há 58 anos. A minha tia era varina e quando eu nasci fui pesada na balança do peixe. Era tão pequenina que era capaz de pesar o mesmo que um chicharro”, lança numa gargalhada.