DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Animais na rua por causa da crise

Cada vez mais há pessoas que perdem a casa e não conseguem tomar conta dos animais de estimação. É tal a desgraça de muitos portugueses que passam a partilhar a vida com os amigos de quatro patas dentro de automóveis
Isabel Laranjo

A crise que se vive no país está espelhada no abandono animal. Esta deixou de ser uma questão sazonal, a ter o verão como principal inimigo dos animais de companhia, e passou a ser um tema todo o ano. Quem o diz é Margarida Saldanha da direção da União Zoófila (UZ). “O abandono já não escolhe data, acontece todo o ano. A grande problemática é a crise económica e habitacional”.

A dirigente da União Zoófila — fundada em 1951 e tida como uma associação de referência no que se relaciona com a proteção dos animais domésticos abandonados, negligenciados e vítimas de abuso em Portugal — refere que muitos animais lhes são deixados à porta e acabam por ali ficar durante anos. “Há animais que estão cá toda uma vida, porque também não há quem os adote, as pessoas estão a viver com muitas dificuldades”, sublinha Margarida Saldanha.

As instalações da associação situam-se em Lisboa na zona das Furnas, em Benfica, e albergam cerca de 400 cães e 170 gatos. Há cães de todos os tamanhos e até animais de raça, como caniches, yorkshires, terriers ou bulldogs franceses. Os gatos espreguiçam-se nas suas almofadas. Muitos dos cães andam à solta, em alegre convívio. Os latidos e as brincadeiras são uma constante para estes animais que tiveram a sorte de serem acolhidos numa instituição após o abandono, à porta ou através de entrega.

Os tutores (ou donos, como se dizia antigamente) não tinham condições de vida para continuar com eles em casa. Muitos, aliás, ficaram mesmo sem casa. Foi o que aconteceu com a cuidadora de uma cadela e de um cão, seu filhote. “Eles estavam a viver com a dona num carro e acabaram por vir para aqui e aqui hão de ficar, a não ser que os adotem”, lamenta Margarida Saldanha.

Um caniche abana-se, alegre, por um dos pátios do abrigo. Aqui há muitas ‘boxes’ (cosotas) para cães, que se entrelaçam num autêntico labirinto, mas também uma lavandaria e um posto médico com duas veterinárias. Margarida, funcionários e voluntários conhecem bem a casa, mas para um estranho torna-se difícil perceber quais as ‘boxes’ que já visitou ou não. Surge-nos um cão de porte pequeno, que veio parar à União Zoófila depois de a dona, uma idosa, ter ido morar para um lar de terceira idade. Margarida Saldanha explica que, nestes casos, a rede de apoio familiar não costuma funcionar e o animal acaba deixado à sua sorte.

Foto: João Miguel Rodrigues

“É pequeno o espírito de sacrifício para ajudar um animal, para que esse animal que era de uma pessoa que se amava e cujo afeto pelo animal é do nosso conhecimento”. Há também casos de separações ou divórcios em que “nenhuma das partes quer ficar com o animal”, diz a mesma responsável.

Porém, é sobretudo a crise na qual Portugal mergulhou que anda a fazer mais estragos no que concerne ao abandono animal. “Com a pandemia, a situação piorou bastante. Mas agora então, com a crise habitacional que estamos a atravessar, piorou imenso”, avança a dirigente da União Zoófila.

Muitos cães e gatos são largados à porta do abrigo — canil e gatil. “É fácil deixar uma transportadora em qualquer lado ou um cão amarrado à porta com uma corda”, constata. Outros animais são abandonados na via pública. “Ainda se veem cães e gatos, ou ninhadas, deixados em caixotes de papelão ou caixotes do lixo”. Outros donos preferem, em primeiro lugar, pedir apoio. “Temos recebido imensos emails de vários pontos do país a pedir ajuda, a questionar sobre se podemos aceitar os animais”. Por aqui, a lotação está esgotada. “Mas obviamente se aparecer um animal à porta não o vamos deixar na rua”.

Muitos são os que chegam, mas poucos são os que partem. “Esta crise económica e habitacional está presente e é a atualidade no nosso país. Isto faz com que haja necessidade de pedir ajuda às associações para ficarem com os animais. Só que aquilo que notamos é que há um menor número de adoções. As pessoas têm uma vida tão incerta… Vão adotar?”, resigna-se Margarida Saldanha.

Foto: João Miguel Rodrigues

Situações de desgraça extrema

No Instituto Zoófilo Quinta Carbonne, um dos abrigos da Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais (LPDA), em Tercena, no concelho de Oeiras, o cenário é semelhante. As ‘boxes’ estão cheias de cães de todos os tamanhos — rafeiros e de raça. Há gatos mas também outra bicharada: um burro, uma porca, cabras, papagaios, hamsters, ratos da Índia, enfim, toda uma miscelânea de animais que, por algum motivo, deixaram de ter tutor. “Temos assistentes sociais a ligar-nos porque alguém foi despejado, tem animais e há dificuldades em saber onde colocá-los”, começa por dizer Florbela Chaves, membro da direção da LPDA.

Preta e Negrão, dois cães, acabaram por morrer na Quinta Carbonne. “Os donos eram um casal de brasileiros, na casa dos 40 anos, que ficaram sem trabalho e estavam a viver dentro do carro. Pediram apoio, deixaram cá os cães e nunca mais voltaram. Já faleceram os dois. Também tivemos outro cão, o Marley, cuja dona também estava a viver num carro”. Quadros da mais dura miséria para que muitos cidadãos se veem arrastados na fase que o país atravessa.

“Este problema da crise da habitação é muito recorrente. Há ainda muitas pessoas que se veem obrigadas a mudar para casas mais baratas e depois deixam de ter condições para ter os seus animais. Ou seja, o animal tem de ir fora”, lamenta.

Janeca é um burro cujo dono deixou de o poder sustentar e agora tem aqui o seu espaço. Junto à entrada para o escritório da Quinta Carbonne há uma gaiola com dois papagaios depenados. Foi uma apreensão feita pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. “Os papagaios vieram em finais de abril, de uma casa onde eram usados para filmes pornográficos e já chegaram assim até nós, todos depenados, o que normalmente é um sintoma de stress”, diz a responsável.

Em outubro de 2022 chegaram à Quinta Carbonne 150 animais, também provenientes de uma apreensão pelo Instituto das Florestas, que neste momento tem a tutela legal dos animais de companhia. “Animais de companhia não são só cães e gatos, há também os chamados animais exóticos. Naquela altura houve uma apreensão de cerca de três mil animais. Desses, vieram para aqui coelhos, furões, chinchilas, hamsters, gerbos e ratinhos”. As chinchilas foram umas sortudas e já foram todas adotadas. Restam dois furões, 13 coelhos, muitos hamsters, gerbos e ratinhos.

Florbela Chaves concorda que o abandono animal já não é só um problema que se coloca no verão. “Aliás, acho que nunca foi só no verão, só que era a face mais visível do problema”. Esta dirigente da LPDA lamenta o que está a acontecer sobretudo na era das redes sociais. “A informação sobre o que fazer com os animais é muita. As pessoas andam nas redes sociais, onde há imensos grupos de ajuda animal. A Internet está cheia de formas de chegar lá. Acho que só quem tem alguma idade e não está familiarizado com a Internet é que não sabe. De resto, acredito que as pessoas que abandonam pura e simplesmente não querem saber dos animais. Aliás, muitas adquirem animais por impulso, porque é giro, mas depois com o passar do tempo percebem que é preciso tempo para eles e já não os querem”.

A LPDA tem um serviço de apoio, quer por telefone quer via email, para aqueles que se veem privados de condições financeiras — ou outras — para terem os animais de estimação ao seu cuidado. “Temos apoio telefónico de segunda a sexta-feira. Recebemos muitas denúncias de maus-tratos, de abandono, mas também pedidos de tutores que estão mesmo com muitas dificuldades económicas, fruto dos tempos que se vivem”.

Também por aqui aparecem casos de famílias que se desintegram e em que o animal é posto de lado. Remata Florbela Chaves: “Há muitos divórcios em que ninguém quer ficar com o animal. Uma das partes vai para um lado, outra vai para outro… Fica o animal sem sítio”.