Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Ação Climática, passava bem sem mais este embaraço: como ainda há dias teve de reconhecer, quando apertado no Parlamento, a nova frota fluvial, contratada pelo Estado por 57 milhões de euros, vai chegar com mais de um ano de atraso, para desespero de largos milhares de passageiros que todos os dias cruzam o Tejo em condições mais do que deficientes.
A viagem do conselho de administração da Transtejo às costas do mar Cantábrico foi animada, intensa e alegre. A presidente da empresa que assegura as ligações entre as duas margens do Tejo, Marina Ferreira, os seus vogais e diretores visitaram, em novembro do ano passado, os estaleiros Gondán, na foz do rio Eo, nas Astúrias, onde estão a ser construídos os dez navios que vão substituir os velhos catamarãs nas travessias entre o Cais do Sodré e Cacilhas, Seixal, Montijo.
A comitiva subiu a bordo do primeiro navio construído, batizado ‘cegonha-branca’, e deu um pequeno passeio pelo gelado rio Eo, que divide a Galiza das Astúrias. Regressou bem-disposta a Lisboa, de tal maneira entusiasmada que anunciou nas redes sociais o lúdico passeio como uma marcante “viagem inaugural” do navio, um dos maiores momentos na história da empresa e do transporte público fluvial. Mas a jornada teve pouco de histórica.
O ‘cegonha-branca’ ainda não está pronto. Faz tempo que devia ter sido entregue à Transtejo – mas, em novembro do ano passado, quando a administração da empresa foi recebida a bordo, ainda estava em fase de testes de mar. O programa de substituição da frota, antiga e cansada, por dez navios novinhos em folha, movidos a energia elétrica, está fatalmente atrasado.
O primeiro navio, segundo o contrato celebrado com o estaleiro espanhol, era esperado no Tejo entre 1 de abril e 30 de junho do ano passado. Seis meses depois da data-limite, os nove mil passageiros que a Transtejo diariamente transporta continuam a ser servidos pelos velhos catamarãs que se arrastam penosamente nas águas do rio. Não há dia sem arreliadoras avarias que obrigam ao cancelamento de carreiras: se há barco, como consta dos horários, nunca se sabe.
Se o contrato tivesse sido cumprido, a Transtejo por esta altura já teria pelo menos quatro navios novos ao serviço entre o Cais do Sodré e Cacilhas, Seixal e Montijo – e até final de junho receberia mais quatro. A frota, no valor de 57 milhões de euros, ficaria completa entre 1 janeiro e 30 de junho do próximo ano com a entrega de mais duas embarcações. Mas os planos da Transtejo, pilotados por mão insegura ao leme, afundaram-se à deriva.
“Os prazos previstos foram ajustados”, diz ao Tal&Qual a porta-voz do conselho de administração da empresa. Ainda assim, a Transtejo não se compromete com datas precisas. Os navios hão de chegar a um ritmo tão incerto como se o calendário andasse ao sabor das ondas. O primeiro, segundo a Transtejo, até final deste mês, mais três até ao fim do ano, quatro ao longo de 2024 e os dois últimos apenas em 2025. A frota achar-se-á pronta e aparelhada no Tejo com um ano de atraso.
Falta eletricidade
A demorada e vagarosa chegada dos navios – ou o ajustamento dos prazos, segundo a Transtejo – teria rendido à empresa uma considerável fortuna se o falhanço fosse culpa da lentidão dos estaleiros. O contrato, a que o T&Q teve acesso, estipula que os construtores pagariam ao cliente penas pecuniárias por cada dia de mora na entrega de algum dos navios. Os valores são copiosos: cinco mil euros diários nos primeiros 30 dias e o dobro a partir do trigésimo-primeiro dia.
A substancial indemnização vinha mesmo a calhar, como sopa no mel, nos debilitados cofres da Transtejo – tão extenuados com a velha frota de catamarãs construída entre 1984 e 1996. A empresa recebe da tutela, o Ministério do Ambiente, e da Ação Climática cerca de um milhão de euros todos os meses para assegurar o contrato de serviço público para a ligação entre as duas margens. Uma parcela vai para a Soflusa, que partilha a administração com a Transtejo e garante as viagens entre o Barreiro e Lisboa. A presidente da empresa, Marina Ferreira, queixa-se amargamente da tutela no segredo da sala de reuniões do conselho de administração – porque a verba pública que lhe é devida pelo serviço prestado é liquidada com aborrecido e eterno atraso. A penúria proíbe, por exemplo, a contratação de mais tripulantes e obriga os mestres dos navios a 600 horas extraordinárias por ano.
A invejável compensação que os estaleiros espanhóis teriam de pagar pelo atraso na entrega dos navios seria para as finanças da empresa como chuva abençoada nos campos sedentos.
Mas a Transtejo não acionou as cláusulas de penalização. Nem podia ter sido de outra maneira. Os estaleiros asturianos, segundo fonte contactada pelo T&Q, teriam entregado os navios dentro do prazo. A Transtejo é que não tinha condições para os receber – e “fez ajustes no contrato” para atrasar a construção. Os navios têm motores elétricos e ainda falta instalar as torres de carregamento das baterias nos pontões de embarque e desembarque.
Se os quatro barcos já tivessem chegado, como mandava o contrato, ainda hoje permaneciam atracados, sem serventia, às escuras, por falta de eletricidade para carregarem as baterias. As torres de carregamento hão de ser importadas da Noruega, fornecidas pela empresa Zinus, uma escolha dos estaleiros espanhóis, a quem a Transtejo concedeu inteira liberdade para decidir sobre o modelo do equipamento – e eles escolheram como muito bem entenderam apesar de sermos nós a pagar. Estão encomendadas quatro – uma para cada estação fluvial: Cais do Sodré, Cacilhas, Seixal e Montijo – que vão custar 1,7 milhões de euros.
As torres não são maquinaria sofisticada. Assemelham-se a pequenas gruas articuladas e de precisão que fazem chegar a bordo a extremidade de uma extensão elétrica – uma espécie de ficha que encaixa numa tomada. Mas a ‘ficha’ tem de estar ligada à eletricidade. E isso é que vai ser o diabo! O transporte da energia desde a rede pública até às torres de carregamento é um verdadeiro bico de obra – tão bicudo que a Transtejo levou um ano para encontrar empreiteiro.
No primeiro concurso, lançado em setembro de 2021, não houve empresa que ousasse fazer a obra pelo valor de 8,6 milhões de euros. A Transtejo quase que duplicou a parada, para 16 milhões de contos, num segundo concurso, em maio do ano passado – mas todos os concorrentes foram excluídos. Só à terceira foi de vez. A empreitada foi finalmente adjudicada, em setembro do ano passado, às empresas CME e Seth, que tinham concorrido em conjunto.
Têm até final deste ano para terminarem a obra – já a Transtejo, se os novos prazos combinados com o estaleiro ainda se mantiverem à tona, terá recebido quatro dos novos 10 navios elétricos. As escavadoras só agora avançam timidamente ao redor do cais do Montijo. Enquanto isso, o ministro Duarte Cordeiro engole em seco…