Pronto, aconteceu o impensável: sábado fui à Festa do Avante!. Tentei entrar no “espaço de paz e liberdade” definido por Jerónimo de Sousa com o espírito para que ele mesmo nos exortara dias antes, ou seja, “com os olhos limpos de preconceito”, mas acabei por me estrear no recinto tolhida por uma reverência pesada, como se estivesse a entrar na Praça Vermelha, no Kremlin ou mesmo no Mausoléu de Lenine, ou me deparasse com as 20 torres de Moscovo a incensar as abominações do bolchevismo, tolhida pela vulnerabilidade da minha presença ali, temendo ser identificada pelos traços ou pelo apelido, algemada, torturada e enviada para as neves da Sibéria ou, simplesmente, lançada a um dos curros do Campo Pequeno e fuzilada ali mesmo.
Exagero? Nada disso. Só na Ucrânia, nos anos 30, morreram quatro milhões à fome, e já estão a dizimá-la de novo e de uma forma a que o próprio Papa Francisco chama “a regressão macabra da humanidade” – ao pé disto, que importância teria suprimir uma avó de nove netos já sem préstimos e à beira da decadência, vista simultaneamente como tia de Cascais e neta do Estado Novo?
Enquanto escritora, ainda me cruzaram o espírito os clarões resgatadores das obras de Gogol, Dostoievsky, Tolstoi e Tchekov, de humanidade luminosa, e ainda me lembrei de que o povo russo é o mesmo que, no passado, inventou a balalaica e criou o Bolshoi, ou gerou Prokofiev, Stravinski e Rachmaninoff, ou, ainda, foi capaz de criar livros extraordinários na clandestinidade, como “O Mestre e Margarita”, de Mikhaíl Bulgákov, o “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak, ou o “O Primeiro Círculo”, de Aleksandr Soljenítsin. Mas a realidade da Rússia actual, sabotando sem tréguas a liberdade do ser humano, sendo o país detentor da maior fortuna ilícita do globo, cujo presidente se descreve como conservador e esconde, de forma irrastreável, a maior fortuna pessoal do Mundo, quase me desencorajou.
O “encantador” Jerónimo
Pouco depois, dava de caras com o encantador Jerónimo de Sousa – e digo-o sem sombra de cinismo – sentado a uma mesa, cansado, discreto e pesaroso, no vértice de uma polémica que o fulaniza e com razão. Mas o breve cruzar de olhos que trocámos dissipou-me os medos. A ser verdade que se julgam os actos e não as pessoas, não queria ser eu a crucificar aquele senhor – que, mesmo equivocado, me parece sempre um homem direito, apesar da posição apenas casmurra, mas suficientemente perigosa, que tem tido face à guerra da Ucrânia – por esta simples razão: se não forem os artistas a escavar para encontrar o bem sobrevivente em todo o mal que podemos esperar da humanidade?
Irrefutável: a Festa do Avante! é o primeiro e maior festival político-cultural português – e também desportivo, gastronómico, musical e teatral – com três dias de feiras, desafios, venda de artesanato e restauração, exclusivamente promovido e realizado pelo Partido Comunista Português. Decorre na Quinta da Atalaia, freguesia da Amora, concelho do Seixal, numa propriedade com uma extensão de 30 (trinta!) hectares, adquirida pelo PCP, a 5 de Setembro de 1989, após uma angariação de fundos. Desde 1976 e até então, a festa ocorrera em quatro espaços diferentes – a antiga FIL, o Vale do Jamor, o Alto da Ajuda e a Quinta do Infantado. Fixou-se no Seixal, definitivamente, o local do evento.
É aberta ao público sem restrições mediante um título de entrada que dá direito a assistir a todas as actuações nos vários palcos, incluindo peças de teatro, ranchos folclóricos, grupos corais, dança e concertos de vários géneros musicais. Por lá já passaram centenas de grupos, artistas famosos, havendo exposições e debates políticos, mostras de artes plásticas, feiras do livro e do disco, jogos tradicionais, gastronomia, ballet, cinema, exposição de Ciência, espaço infantil, etc.
‘Rave Avante!’
Para a edição de 2022, cumpriu-se a anunciada homenagem a Saramago e à música contida nos seus livros, dois concertos em honra de Adriano Correia de Oliveira e muita música popular portuguesa, africana, fado, jazz, rock, bluegrass, hip-hop, etc., tendo-se, este ano, acrescentando a dança electrónica “e politicamente empenhada” numa iniciativa inovadora: a ‘Rave Avante!’. A somar a tudo isto, vieram ainda artistas de Angola, Bélgica, Brasil, Cabo Verde, Cuba, França, Gana, Líbano, etc.
Mas enquanto, ao longo dos anos, a Festa acenava com nomes estelares como os de António Zambujo, Ana Moura, Ary dos Santos, Bernardo Sassetti Trio, Camané, David Fonseca, Deolinda, Fausto, Katia Guerreiro, Madredeus, Maria João, Mário Laginha, Rui Veloso, Sétima Legião, Trovante, Vitorino, Xutos e Pontapés, Pedro Burmester ou Rao Kyao, os nomes de cartaz do último fim-de-semana não me pareceram da mesma grandeza, com excepção da Carminho e dos Mão Morta, certamente pela posição dos dirigentes do Partido e do repúdio que causou aos portugueses – bem podem proibir a venda de Coca-Cola na Festa, renegando o esgoto do imperialismo, que os comunistas, com a sua teimosia absurda, não lavam as mãos assim tão facilmente.
A propósito de mãos: foram os Mão Morta que me tocaram na rifa, começando por me assustar e acabando por me angustiar ainda mais; no palco, num cenário que me pareceu gótico, um solista veterano berrava uma poesia vernacular incendiária, erótica, escatológica – talvez improvisada, talvez memorizada – que me obrigou, já a hiperventilar, a comprar uma fartura e a comer três churros seguidos com o óleo ainda a ferver. Atordoada, fugindo da gritaria, dei com uma idosa de cadeira de rodas esquecida num estrado, diante daquele cenário assustador, a quem uma família perversa, no meu imaginário, querendo porventura agilizar-lhe o fim, deixara ali abandonada, sem, como eu, poder escapar à gritaria– pobre criatura, cuja imagem se me aferrou ao espírito o resto da noite, e só me lembrou a tortura do filme Laranja Mecânica, com aquele delinquente pestanudo obrigado a ouvir sucessivamente e durante dias a 9.ª de Beethoven! Nem posso jurar sobre se a única ambulância que ouvi durante a noite não se deveu à remoção da senhora desmaiada e, pelas minhas contas, já a espumar da boca.
Woodstock limpinho
Depois, foi andar, andar e voltar a andar, durante muitos quilómetros, pasmando com aquele Woodstock português, o qual, ao mesmo tempo, me fazia lembrar Fátima, sem suplício, terços, betos ou atropelos, mas com promessas de fé concorrentes, com famílias inteiras vestindo simplesmente, caminhando sem pressa nem histerias, conversando como em casa, jantando, petiscando ou bebendo cerveja, apoiadas por uma organização excepcional e protegidas por dezenas de polícias e voluntários, sem um único ébrio à vista e nem um só papel no chão, com a terra e os relvados imaculados como só se enxerga actualmente em Nice, no Mónaco ou em Viena de Áustria – palmas para o nível de civismo! O espaço era de facto de liberdade e de paz, e tive pena de não encontrar pontos fracos a apontar para satisfazer esta queda para a perfídia, que se regala tanto em cenários de esquerda como de direita, sem distinção.
Finalmente, toda aquela gente me comoveu. As pessoas são só pessoas e, no fundo, os partidos só partidos. Derrubam países, exterminam povos, mas nunca com intenção pelo menos consciente. Ali, misturados uns com os outros, aparentemente longe das esferas de poder, éramos todos crianças assustadas, incluindo o Jerónimo de Sousa.
Para mim, comédia e tragédia à parte, foi uma experiência religiosa.