DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Barco da Transtejo pegou mesmo fogo

O T&Q BEM AVISOU…
Na semana em que o Tal&Qual denunciou que os novos barcos elétricos da Transtejo são um perigo para os 27 mil passageiros que diariamente atravessam as margens do Tejo – o único catamarã da frota recebido em Lisboa ardeu. Estava atracado em Cacilhas e quase pronto para entrar ao serviço. O risco está nas baterias de lítio
Manuel Catarino

O único navio recebido pela Transtejo, da frota de 10 movida a energia elétrica comprada aos estaleiros espanhóis Gondán, aguardava atracado em Cacilhas a entrada ao serviço. Aguardava…. Incendiou-se. O desastre ocorreu na mesma semana em que uma investigação jornalística do Tal&Qual alertava para o perigo dos catamarãs elétricos encomendados pela empresa pública que assegura as ligações fluviais entre Lisboa e Cacilhas, Seixal, Montijo.

Os navios são autênticas bombas-relógio flutuantes. O risco está na quantidade de baterias de lítio que os alimentam. As baterias já provaram que não são de fiar. Quando menos se espera, entram em combustão. O risco é tanto que o ar dos compartimentos que as acomodam tem de ser constantemente renovado. Tanta cautela estende-se até aos navios atracados. Era o caso do ‘Cegonha’, o único catamarã da nova frota recebido pela Transtejo.

O ar no interior do casco repleto de baterias, sob a plataforma de fibra de vidro onde estão os assentos para 546 passageiros, é dia e noite renovado, sem cessar, para se manter uma atmosfera mais fria e húmida – e assim prevenir incêndios causados pelas reações do lítio. Mas o vigilante contratado pela Transtejo de serviço ao barco, imprudente e sem grande formação, desligou o sistema de renovação do ar nos compartimentos das baterias. Foi o suficiente. As baterias provocaram um curto-circuito que incendiou a centralina do navio – um computador de bordo que processa dados e otimiza o funcionamento dos motores.

As consequências, ainda assim, foram pura sorte. “O fogo que destruiu a centralina só por acaso não atingiu as baterias. Se isso tivesse acontecido, 15 dias depois o incêndio alimentado pelo lítio ainda estaria ativo. A não ser que o navio fosse afundado”, diz uma fonte contactada pelos nossos repórteres. Ninguém da Transtejo sabia lidar com o incêndio. Os estaleiros espanhóis foram contactados. Um engenheiro dos estaleiros estava afortunadamente em Lisboa – e foi ele que acudiu ao incêndio.

 

‘Bombas’ a bordo

As grandes companhias seguradoras internacionais estão a perder muito dinheiro com os incêndios a bordo dos navios que transportam carros elétricos. A conta já vai em 9 mil milhões de dólares, quase 8,5 mil milhões de euros. A razão do prejuízo brutal é uma: as baterias podem arder e, quando ardem, por reações químicas que libertam oxigénio e alimentam o fogo, as chamas têm-se mostrado vorazes e incontroláveis. As seguradoras estão a exigir a substituição dos tradicionais equipamentos de segurança e a qualificação das tripulações.

Mas o assunto, pelos vistos, não merece grande preocupação por parte da Transtejo. Os novos navios são um perigo para os 27 mil passageiros que nos dias da semana atravessam o rio.

O alerta partiu do Sindicato da Marinha Mercante, Indústrias e Energia. O secretário-geral, Alexandre Delgado, um homem do mar, quis saber se os novos barcos são seguros em caso de incêndio com os passageiros a bordo (como o T&Q contou na passada quarta-feira). Delgado enviou uma série de perguntas à Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM). O T&Q teve acesso ao documento. Alexandre Delgado exige saber, por exemplo, se os navios vêm equipados com um conjunto de baterias independentes para alimentarem exclusivamente as bombas de incêndio de esgoto em caso de emergência – e, em caso afirmativo, qual é a autonomia?

A DGRM limpou daí as suas mãos e reencaminhou as perguntas para a Transtejo. A empresa que fizesse a fineza de responder. As respostas, a que os nossos repórteres tiveram acesso, são tão claras como uma obra de pintura abstrata. Conclui-se, muito simplesmente, que não têm baterias autónomas para alimentação das bombas de incêndio em caso de fogo a bordo. “Não é grave. É gravíssimo! A Transtejo anda a brincar com a segurança dos passageiros”, afirmou ao T&Q um experiente capitão da Marinha Mercante, António Ferreira.

Os novos navios, construídos em fibra de vidro altamente inflamável, são do tipo catamarã: têm dois flutuadores, um em cada lado, sobre os quais está assente a plataforma dos passageiros. As baterias estão dispostas ao longo do interior de cada um dos flutuadores e ocupam praticamente todo o espaço disponível. Em caso de incêndio, a Transtejo garante que é possível isolar os dois conjuntos de baterias: a energia das baterias do lado em que há fogo é cortada – e o navio continuará a ter a carga das baterias do outro lado.

O fogo em baterias de lítio, levando em conta o que se tem passado nos navios que arderam, é extremamente quente, de rápida propagação e autossustentável pela produção de oxigénio originada pelas reações químicas. Numa frase simples: a extinção de um fogo desta natureza é muito difícil. A água que se lhe atira, como se tudo já não fosse suficientemente grave, leva à formação de gazes tóxicos.

O capitão António Ferreira não se conforma com a ligeireza da Transtejo perante a possibilidade de um fogo a bordo. A única certeza que se tem sobre acidentes é a de que não costumam avisar: dão-se, quando menos se espera. O comandante imagina a probabilidade de um incêndio deflagrar a bordo de um catamarã a meio da viagem.

O navio partira, por exemplo, de Lisboa para o Montijo e navega com 40 por cento da carga, o suficiente para chegar ao destino, carregar as baterias e regressar à capital. Mas em caso de emergência, isoladas a baterias do compartimento em chamas, restar-lhe-á apenas a carga do outro compartimento – uns miseráveis 20 por cento.

O comandante Ferreira não tem dúvidas: a quantidade de energia disponível não dará para manter em funcionamento as bombas de incêndio e de esgoto o tempo suficiente para dominar as chamas. O fogo produzido pelo lítio atinge temperaturas da ordem dos dois mil graus. A fibra de vidro, de que são feitos os catamarãs, não suporta mais do que 300 graus. Isto ainda vai dar que falar!…