No verão de 2005, o inspetor-coordenador Carlos Dias Santos, um histórico da Polícia Judiciária na guerra ao tráfico de droga, recebe no seu gabinete de trabalho uma visita muito especial – o juiz Carlos Alexandre. O magistrado ainda não era uma celebridade. Fora nomeado havia cerca de um ano para o Tribunal Central de Instrução Criminal – o ‘Ticão’ –, ainda no velho Tribunal da Boa Hora, e estava no início de uma carreira que faria dele o mais brilhante vulto da constelação judiciária.
O encontro fora combinado por um primo do juiz, Vítor Alexandre, colega de Dias Santos na então Direção Central de Combate ao Tráfico de Estupefacientes. Carlos Alexandre tinha informações preciosas sobre uma rede internacional com uma ponta em Mação, o seu concelho natal, que mandava vir cocaína da América do Sul. Era urgente desmantelar o gangue.
Dias Santos prontificou-se a ouvir o juiz. Mas Carlos Alexandre não tinha detalhes. As informações eram vagas, tão vagas que se tornavam inúteis: nem uma suspeita fundamentada, um indício, um vislumbre, nada! Apenas tinha um nome: Francisco Branco, empreiteiro, homem de muitos cabedais, candidato independente nas listas do Partido do Socialista à freguesia de Carvoeiro, no concelho de Mação. O juiz estava convicto de que o seu conterrâneo ia com frequência ao Uruguai. As viagens só podiam ter uma explicação: altos negócios de droga.
A denúncia de Carlos Alexandre contra Francisco Branco está relatada numa participação que Dias Santos fez anos depois à Procuradoria-Geral da República – que a remeteu para a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa. O ex-coordenador de investigação criminal, já aposentado, foi ouvido, em maio de 2017, pela procuradora-geral adjunta Isabel Francisco. Não escondeu nada. Contou que o juiz o visitou na Polícia Judiciária para denunciar um suspeito de tráfico internacional de cocaína e revelou, tintim por tintim, como Carlos Alexandre, motivado por querelas da política local de Mação acicatadas pelas eleições autárquicas de outubro de 2005, pretendeu colocar sob escuta telefónica o candidato do PS a uma freguesia do concelho. O Tal&Qual teve acesso ao auto de declarações. Está lá tudo.
O inquérito 238/05
Carlos Alexandre, após o almoço com o primo Vítor numa tasca frequentada por pessoal da Judiciária, atravessou a Avenida Duque de Loulé em direção à sede do departamento de combate ao tráfico de estupefacientes. Dias Santos esperava-o no gabinete. Não se conheciam. O juiz ajeitou-se no sofá, naquele seu jeito de queixo colado à gravata sem levantar os olhos dos sapatos, e disse que pretendia “denunciar um cidadão”.
O polícia ficou ao dispor para o ouvir. Denúncias de tráfico eram música para os seus ouvidos. Carlos Alexandre falou-lhe de um “cidadão” da sua terra que viajava regularmente para diversos países da América Central (nomeadamente, Uruguai e Colômbia) e que estava ligado ao tráfico internacional de droga. Sugeriu que a informação ficasse oficialmente registada como um inquérito – de maneira que a PJ pudesse solicitar ao Ministério Público as interceções telefónicas ao ‘cidadão suspeito’. O juiz fez questão de deixar claro que era absolutamente necessário omitir do expediente o seu nome como “informante”: a denúncia não era uma denúncia, mas informação recolhida pela PJ no “meio criminal”.
A preciosa informação, vinda de quem vinha, só podia verdadeira. Dias Santos agradeceu a cortesia. No dia seguinte, como ficara combinado, enviou o inspetor-chefe Armando Martinho ao gabinete de Carlos Alexandre, no Tribunal da Boa Hora, para recolher todos os elementos que o juiz tinha sobre o suspeito. Mas o magistrado não tinha nada. Apenas um nome e um número de telemóvel – além do pressentimento sobre as atividades criminosas do candidato à Junta de Freguesia de Carvoeiro. Dias Santos ficou desolado com a escassez de informação. Insistiu com o juiz. Era preciso mais: hábitos, rotinas e, fundamental, o número de contribuinte do suspeito para deteção de bens patrimoniais de relevo. Carlos Alexandre irritou-se. Não tinha mais nada. Disse que o caminho mais “desejável, seguro e rápido” para o apanhar era pô-lo sob escuta telefónica.
O juiz já estava a ver o filme todo. A Polícia Judiciária solicitava as escutas ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que, por sua vez, sujeitava o pedido à autorização ao Tribunal Central de Instrução Criminal, o ‘Ticão’ – e o ‘Ticão’ era ele, Carlos Alexandre, que já estava de caneta de aparo na mão para autorizar as escutas. Mas Dias Santos não tinha nada para justificar a promoção de escutas. Teria de ser a PJ a arranjar lenha para queimar o suspeito do juiz Alexandre.
A Polícia Judiciária abriu um inquérito – com o número 238/05.4JELSB, a que os nossos repórteres tiveram acesso – e investigou a vida do denunciado. O trabalho ficou a cargo da secção de informações da DCITE, coordenada por Vítor Alexandre, o primo do juiz. O primeiro relatório, assinado pelo inspetor-chefe Armando Martinho, é rol superficial e leviano de juízos e palpites. Começa assim: “Através das ações de pesquisa no meio criminal” apurou-se que “um grupo de indivíduos se dedica ao tráfico de estupefacientes” […] “A parte mais visível deste grupo diz respeito à atividade dum indivíduo, antigo tratorista e que agora revela um poder económico elevadíssimo, de seu nome Francisco do Carmo Branco, […] que aproveita a sua atividade de empreiteiro da construção civil para dissimular dinheiros de proveniência ilícita […] é nas zonas de Oeiras e Cascais, onde desenvolve a sua atividade de empreiteiro, que aproveita para fazer contactos relacionados com o tráfico de estupefacientes […] é proprietário duma quinta na zona entre Abrantes e Carvoeiro onde se reúnem indivíduos que se movimentam com carros de alta cilindrada”.
Vigilâncias à residência de Francisco Branco, nos arredores de Sintra, e à sua quinta de Mação, deram em nada – nem um indício. Só restava, como Carlos Alexandre pretendia desde o início, o recurso às escutas. Em 13 de julho de 2005, a menos de três meses das eleições autárquicas, a PJ pediu ao DCIAP a promoção das interceções telefónicas ao candidato à Junta de Freguesia de Carvoeiro. Francisco Branco teve sorte.
O pedido das escutas foi parar à procuradora Helena Fazenda – que não deve ter perdido muito tempo a dar despacho. A magistrada do Ministério Público, jubilada há um ano como conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, devolveu o documento à procedência a exigir indícios consistentes. Apenas um nome, um número de telefone e meia dúzia de suspeitas metidas a martelo não eram suficientes para devassar a vida de alguém ao telefone.
Dias Santos ligou a Carlos Alexandre a dar-lhe a má notícia: a procuradora não foi na conversa. O juiz insistiu com um novo pedido ao Ministério Público. Talvez uma segunda tentativa, “reforçando a argumentação”, desse resultado. A Polícia Judiciária voltou à carga. Em vão. Helena Fazenda não se deixou levar. Não se limitou a indeferir as escutas. Também decidiu arquivar o inquérito.
Dias Santos foi testemunha do desalento e da frustração de Carlos Alexandre. Dias depois, cruzou-se com Vítor Alexandre, o primo do juiz, e deu-lhe conta do desaire no caso denunciado por Carlos Alexandre. Dias Santos, pelos vistos, ainda não sabia que a denúncia era uma maquinação. Vítor Alexandre é que o pôs a par: “Eh, pá, esquece-se lá isso!… Mas o meu primo não te disse quem era o gajo? São merdas lá do amigo do meu primo na Câmara de Mação. Tem a ver com a política e com as próximas eleições. Esquece, pá!”.
Varreu-se-lhes tudo…
Carlos Dias Santos esqueceu o assunto durante pelo menos 11 anos. Até que em abril de 2016, já reformado, ele e o inspetor-chefe Ricardo Macedo foram detidos pelos colegas da Unidade Nacional de Combate à Corrupção, no âmbito da Operação Aquiles, por suspeitas de ligações a uma rede colombiana de tráfico de droga. Dias Santos lembrou-se da história do suspeito de Mação quando se sentou à frente do juiz de instrução para ser interrogado. Carlos Alexandre mandou-o em prisão domiciliária com pulseira eletrónica.
Não descansou enquanto não fez chegar à Procuradoria-Geral da República a sua versão da história da denúncia feita por Carlos Alexandre. Foi ouvido, por fim, em maio de 2017. Estava preso em casa e foi autorizado a sair para prestar declarações na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa. Talvez a procuradora-geral adjunta Isabel Francisco não o tivesse levado a sério: Dias Santos estava em prisão preventiva, decretada por Carlos Alexandre, e não era por isso um depoente acima de qualquer suspeita. Ainda assim, as declarações do ex-coordenador da PJ não podiam ser ignoradas.
Isabel Francisco não as ignorou – mas, a avaliar pela destreza com que investigou os factos denunciados por Dias Santos, foi como se o caso estivesse condenado ao caixote do lixo. Ouviu Vítor Alexandre e Armando Martinho. O primeiro negou que alguma vez tivesse proporcionado um encontro entre o primo e Dias Santos e muito menos se lembrava de um suspeito de Mação. Martinho também não fazia ideia. A procuradora nem sequer se deu ao trabalho de os confrontar com o inquérito para lhes avivar a memória. Lá estão os seus nomes e as respetivas assinaturas em várias informações de serviço sobre as “suspeitas” que recaíam sobre Francisco Branco. O empreiteiro, candidato pelo PS, conquistou mesmo a Junta de Freguesia da sua terra. Mais tarde, a sua empresa de obras públicas foi tomada de assalto pelos inspetores da Autoridade Tributária. As dúvidas sobre se os impostos eram liquidados partiram da Repartição de Finanças de Algés – onde Carlos Alexandre foi jurista, antes de ser juiz, e onde trabalhava a mulher. Mas isto é tudo uma coincidência.
Francisco Branco, contactado pelo Tal&Qual, recorda que houve um tempo em que quis “levar à Justiça os canalhas” que o tomaram à laia de um traficante de droga. Mas desistiu dessa guerra. “Pior foi o que as Finanças me fizeram passar. Não encontraram nada. Mas andaram anos atrás de mim”, lamenta.
Dias Santos, condenado a sete anos por suspeita de ligações a uma rede colombiana, aguarda pacientemente o recurso. Foi tramado por António Benvinda, um antigo agente da Polícia Judiciária que passou a trabalhar como informador. Apanharam-no no fio da navalha em que se trabalha no combate às redes de tráfico: é preciso deixar passar um quilo para obter informações que permitam apanhar uma tonelada. O Tribunal da Relação anulou o acórdão condenatório – mas a juíza de primeira instância, Marisa Arnêdo, insiste em manter tudo como na versão inicial.
Carlos Alexandre aceitou, por fim, ser promovido a desembargador. Mas desistiu de ocupar o seu lugar no Tribunal da Relação de Lisboa para se candidatar a um cargo no Luxemburgo – o de procurador europeu. O Ministério da Justiça já propôs ao Conselho da União Europeia os três candidatos a que estava obrigado: os juízes Carlos Alexandre e Filipe Vilarinho Marques e o procurador José Ranito. O Conselho terá agora de escolher um entre os nomes propostos. O processo de seleção é rigoroso. Carlos Alexandre está em desvantagem. Confessou na audição parlamentar, há cerca de um mês, as suas dificuldades com a língua inglesa: “Não falo inglês fluentemente, mas consigo compreender tudo o que leio ao longo de milhares de páginas”. O ‘inglês de praia’ do juiz Carlos Alexandre será suficiente para ele passar na prova da entrevista a que será submetido no Conselho? Ainda o vamos ter no Tribunal da Relação…