DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Cenho carregado

Estamos zangados – diz Jorge Espírito Santo, da federação sindical dos médicos. E explica porquê: “Ganhamos o mesmo há 15 anos, perdemos 20% do poder de compra, estamos muito zangados”.

Onde foi que já ouvi isto nas últimas vinte e quatro horas?

Os médicos estão zangados. Os professores estão zangados. Os pais dos alunos estão zangados. Os trabalhadores ferroviários estão zangados com a CP. Os passageiros da CP estão zangados com os trabalhadores ferroviários. Os enfermeiros estão zangados. Os trabalhadores das Águas e Resíduos da ilha da Madeira estão zangados. Os funcionários da Administração Pública estão zangados. Os motoristas de veículos de mercadorias estão zangados. Os trabalhadores das empresas subcontratadas do Grupo EDP estão zangados. Os tripulantes de cabine estão zangados. O pessoal de manutenção aérea está zangado. Os auxiliares não-docentes da rede pública estão zangados. A mão-de-obra volátil dos callcenters está zangada. Os funcionários judiciais estão zangados. Os estudantes climáticos estão zangados. Os trabalhadores dos impostos estão zangados. Os empregados dos silos portuários estão zangados. Os trabalhadores da indústria de transformação alimentar estão zangados. Os técnicos das unidades locais de saúde estão zangados. O pessoal das IPSS e Misericórdias está zangado. Os administradores demitidos da TAP estão zangados com o Governo. Os portugueses estão zangados com a TAP. O ex-ministro Pedro Nuno Santos está zangado com o mundo. O mundo está zangado com Pedro Nuno Santos. Os bispos estão zangados com a comissão dos abusos. Os portugueses estão zangados com os bispos. Os bispos estão zangados entre si.

Portugal inteiro é uma carantonha de cenho carregado. Já não se pode ligar um televisor sem que nos apareçam, a encher o écran, umas sobrancelhas iradas, uma boca vociferante, frases em superlativo, arengas como punhos, a rua aos gritos, ultimatos, recusas, denúncias, insultos, agressões, represálias, ofensas, declarações de guerra, desacatos, grosserias, incómodos. Crispação no colectivo. E o que se segue: desconforto, desistência, desalento.

Quem diria, há um ano, que aqui chegaríamos?

Passámos da inconsciência ébria à subconsciência do desastre. Da euforia à ressaca – sempre sob o signo da desproporção.

Escassa ou nenhuma culpa pode assacar-se a médicos, professores, passageiros da CP, enfermeiros, motoristas: o seu único erro foi acreditar na banha da cobra, no coro de grilos falantes em que se transformou a ágora portuguesa.

Nunca como agora fez falta uma pausa de silêncio. De raciocínio. De serenidade e reflexão, com os altifalantes desligados. Pedir isso é pedir a lua, eu sei. Mas é disso mesmo que estamos precisados, como de pão para a boca.

Jorge Morais

Carta da Aldeia

Jorge Morais