A empresária Isabel dos Santos não é a única figura da elite angolana a recorrer a empresas de lobbying para tentar influenciar os políticos e a opinião pública dos EUA. Como o Tal&Qual revelou a 28 de Dezembro, a filha mais velha do ex-presidente angolano José Eduardo dos Santos contratou em Novembro, pela módica quantia de cinco milhões de dólares (cerca de 4,7 milhões de euros), uma empresa que já trabalhou para o ex-presidente Donald Trump: a Stryk, com sede em Washington. O objectivo é o de “denunciar crimes e abusos de direitos humanos por parte do presidente de Angola, João Lourenço”, diz o contrato firmado por Isabel dos Santos. A empresária quer manchar a imagem do sucessor do pai e assim atingir a Justiça angolana, que anda no seu encalço por suspeitas de lavagem de dinheiro e tráfico de influências, entre outros crimes.
Mas não, ela não é a única. Sabe-se que o general João Lourenço — presidente desde 2017 e antigo secretário-geral do MPLA — também gosta de empenhar os recursos dos contribuintes angolanos em empresas de “representação profissional de interesses”. Já mandou assinar pelo menos dois contratos com a consultora Squire Patton Boggs, representada por Robert S. Kapla, um antigo funcionário da Casa Branca ao tempo de Bill Clinton. O problema é que estranhamente a Squire Patton Boggs subcontratou, para esta tarefa, uma empresa offshore de Malta com ligações a Portugal — e na América soaram os alarmes das autoridades, desconfiadas de ilegalidades neste negócio e noutras negociatas que alegadamente têm o presidente angolano como protagonista.
Dois contratos e “feliz aniversário”
A Squire Patton Boggs é americana, mas tem presença em vários continentes. Começou como escritório de advogados em Londres na segunda metade do século XIX e hoje é descrita como uma das mais poderosas empresas de lobbying dos EUA. Na carteira de clientes incluem-se os governos dos Camarões, da Etiópia, do Panamá, da China, da Coreia do Sul, da Croácia, da Autoridade Palestiniana. Mais de 10 mil clientes activos, segundo a própria empresa.
Um dos contratos desta firma com Angola data de 2019 e tem o valor de cerca de um milhão de dólares, preço mais do que normal nas esferas do lobbying de Washington. A Squire Patton Boggs pôs-se em campo ao longo de 2020 e em nome do Estado angolano fez copiosos contactos por telefone e e-mail — mais de 50 — com jornalistas, membros do Departamento de Comércio e do Departamento de Estado americano, deputados e senadores republicanos e democratas.
Em 18 de Junho de 2021, João Lourenço mandou assinar um segundo contrato com a Squire Patton Boggs, mas desta feita com um valor mais bojudo: 3,7 milhões de dólares. Tal como o anterior, o documento dava instruções à consultora americana para “melhorar a imagem de Angola nos EUA” e “fazer aumentar o investimento e o comércio americano” em Angola, entre outras obrigações. Quem assinou pela parte angolana foi Victor Manuel Rita da Fonseca Lima, que é secretário para Assuntos Diplomáticos e Cooperação Internacional desde que João Lourenço assumiu a cadeira do poder. Victor Fonseca Lima é uma figura controversa. Já foi embaixador de Angola em França e Espanha, no Japão e na Coreia do Sul, além de ter sido secretário de José Eduardo dos Santos na década de 90 e até funcionário da embaixada de Angola na URSS entre 1978 e 83.

Os contactos por telefone e e-mail junto de legisladores e jornalistas americanos continuaram ao longo do ano passado, no contexto do segundo contrato com a Squire Patton Boggs — e, entretanto, até foi feita uma adenda. Tais diligências incluíram dengosas cartas de “feliz aniversário” dirigidas a membros do Congresso e assinadas pelo embaixador de Angola nos EUA, Joaquim do Espírito Santo — uma prática fora do comum e alvo de chacota nos meios diplomáticos. Tudo arranjado pela Squire Patton Boggs.
Estas tentativas de limpar a imagem junto dos americanos tiveram como ponto alto uma carta de 2 de Dezembro de 2022 dirigida a Joe Biden e assinada pela congressista democrata Karen Bass, devidamente industriada pela Squire Patton Boggs, com o objectivo levar o presidente americano a aceitar uma reunião bilateral com João Lourenço na Casa Branca no próximo dia 19 de Maio. Entretanto, Karen Bass deixou o Congresso e tomou posse como ‘mayor’ de Los Angeles.
Note-se que o lobbying é legal nos EUA e obedece a regras apertadas. Obriga as empresas envolvidas a um registo detalhado no Departamento de Estado ao abrigo de uma lei de 1938: a FARA, Foreign Agents Registration Act, ou lei do registo de agentes estrangeiros. Foi nesta base de dados pública que o T&Q consultou os contratos assinados pelo regime angolano.
Acontece que desde Fevereiro de 2021 a plácido lobbying a favor de Angola vive em permanente sobressalto à conta de informações divulgadas pela consultora da África do Sul Pangea Risk, especializada em análise de gestão de risco. Faz agora dois anos, a Pangea publicou um relatório intitulado “Administração dos EUA reforça investigação ao presidente de Angola e aos seus parceiros de negócios”, onde dizia que vários dirigentes do MPLA, o partido do poder em Luanda, estavam a ser investigados por “violação de leis e normas dos EUA”.
Segundo a Pangea, procuradores norte-americanos teriam provas concretas contra João Lourenço e a sua mulher, Ana Dias Lourenço, além do ministro da Energia João Baptista Borges e o antigo vice-presidente de Angola Manuel Vicente (que em criança foi criado pela irmã mais velha de José Eduardo dos Santos). Seriam suspeitos de actos de corrupção, transferências bancárias ilegais, fraude para compra de imóveis e conspiração para defraudar o Departamento de Justiça.
Mais: as autoridades americanas teriam suspeitam de alegados subornos e comissões ilegais pagas pela brasileira Odebrecht a empresas detidas por João Lourenço e Ana Dias Lourenço, além de presumíveis transacções fraudulentas feitas pela empresa pública Simportex, controlada pelo presidente angolano e fornecedora do Ministério da Defesa. Além das óbvias consequências criminais directas, tal investigação poderia comprometer o financiamento e a restruturação da dívida de Angola, escreveu a Pangea Risk.
Onde andam os 625 mil?
A partir de Luanda, fontes bem colocadas disseram esta semana ao nosso jornal que o governo e o MPLA entraram em pânico perante a divulgação daquelas informações. E isso ajudou muito a que o regime mudasse rapidamente de estratégia no que diz respeito a relações diplomáticas. João Lourenço fez pausa na subserviência aos interesses russos e chineses, tendo intensificado a sedução dos americanos, na tentativa de frear as suspeitas de Washington, disseram-nos as mesmas fontes. Presumivelmente, o dossier continua aberto. À hora de fecho desta edição, a embaixada dos EUA em Lisboa não tinha confirmado ao nosso jornal em que ponto de encontra a investigação. O Departamento de Justiça também não se mostrou disponível para comentários.
Quer isto dizer que o contrato de lobbying de 2021 pode muito bem ser interpretado como um passo claro de João Lourenço para tentar que o presidente americano, Joe Biden, e as autoridades dos EUA aligeirem o escrutínio a Angola. O problema é que o regime do general já tinha assinado em 2019 aquele outro contrato com a Squire Patton Boggs. E a carta de compromisso relativa a esse contrato dizia claramente — tal como aliás diz a carta de compromisso do contrato de 2021 — que a Squire Patton Boggs iria trabalhar com a ajuda da offshore Erme Capital Ltd. A Erme tem sede em Malta e está ligada a Portugal e a Manuel Vicente, tendo alegadamente recebeu 625 mil dólares através da Squire Patton Boggs.

Os americanos terão dúvidas sobre o pagamento daquele montante, por ter ido parar a uma offshore. Pode ter havido fraude às leis dos EUA. Não se sabe quem terá sido o beneficiário último dos 625 mil dólares: Manuel Vicente? E também não se sabe que montante, dos 3,7 milhões de dólares do segundo contrato, terá entretanto chegado à Erme Capital.
João Lourenço tem apresentado a perseguição aos herdeiros de Eduardo dos Santos, nomeadamente a filha mais velha, como prova de luta contra a corrupção em Angola, o que muito ajudou o país a beneficiar de apoios do Fundo Monetário Internacional (FMI) e de financiamento internacional da Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI), incluindo ajudas americanas, ainda segundo o relatório da Pangea Risk. Qualquer investigação por parte dos EUA seria, portanto, simplesmente desastrosa para a imagem impoluta que o general Lourenço procura construir. E também não beneficiaria a visão de Biden que consiste em considerar a Angola de João Lourenço e o Brasil de Lula da Silva como aliados estratégicos para os interesses americana nas respectivas regiões. Contactada há dias, a embaixada de Angola em Lisboa não respondeu às perguntas do T&Q.
Rasto do dinheiro passa por Malta e chega a Portugal
A Erme Capital tem sede em Sliema, uma cidade turística da ilha de Malta — mais propriamente no edifício de um grande centro comercial. Registos idóneos, incluindo os dos Paradise Papers (investigação jornalística de 2017 sobre paraísos fiscais), confirmam que a Erme está ligada à sociedade anónima Domínio Capital localizada na Rua Castilho, 75, em Lisboa.
O administrador da Domínio Capital é Pedro Pinto Ferreira, filho de Carlos Pinto Ferreira, ligado à clique angolana no tempo em que Manuel Vicente era vice-presidente e dirigia os destinos da petrolífera estatal Sonangol. Aliás, até ao ano passado um dos membros da Squire Patton Boggs — a empresa americana de lobbying contratada pelo regime de João Lourenço — era Joseph L. Brand, lobista da Sonangol quando Vicente dirigia a petrolífera. Esta ligação foi referida em Janeiro de 2020 por Isabel dos Santos numa entrevista à RTP3 e mais tarde confirmada pelo jornal oposicionista Folha 8, de Luanda.
Convém recordar que a investigação criminal contra ex-vice de Angola, hoje radicado no Dubai, continua a marcar passo em Luanda. Há seis anos, no âmbito da Operação Fizz, Manuel Vicente foi acusado pelo Ministério Público em Portugal de ter corrompido com 763 mil euros o procurador Orlando Figueira para este arquivar um processo-crime que tinha Vicente como alvo.
O procurador acabou condenado a seis anos e oito meses de prisão efetiva — e poderá ser preso a qualquer momento, porque a sentença transitou em julgado há cerca de dois meses. O processo de Manuel Vicente foi remetido para Angola em 2018, por decisão da Relação de Lisboa, depois de longos meses de resistência da Justiça portuguesa. Até Setembro de 2022, Manuel Vicente esteve protegido pelo prazo de cinco anos de imunidade para antigos titulares de cargos públicos em Angola.