A última semana ficou marcada pelo anúncio da editora norte-americana Harper Collins, uma das cinco maiores do mundo em língua inglesa e com um volume de negócios de 1,3 mil milhões de dólares, de que tenciona reeditar as obras de Agatha Christie, criadora de Hercule Poirot e Miss Marple, com cortes, alterações e substituições no texto. Justificação: os originais da escritora britânica, aos olhos dos leitores de hoje, em especial em algumas comunidades minoritárias, poderiam revelar-se “ofensivos”, atendendo a determinadas referências étnicas, culturais e físicas.
É a mais recente forma de censura literária, agora exercida por “leitores de sensibilidade” contratados pelas próprias editoras anglo-saxónicas para lerem as obras originais e sugerirem “melhoramentos”. Por exemplo, é proibido escrever “gordo”: agora deve-se dizer apenas “grande”. E “nativo” transformou-se em “local”. “Oriental” passou a ser vocábulo interdito, assim como as cores preto, branco e castanho quando aplicadas à cor da pele. É o movimento ‘woke’ aplicado à literatura a disseminar-se dos Estados Unidos para a velha Europa, tendo como primeira paragem a Grã-Bretanha.
Nos meios literários de língua portuguesa segue-se com atenção a controvérsia sobre o carácter censório e obscurantista das edições adulteradas, com muitos autores e analistas a criticar as editoras que cederam ao avanço ‘wokista’. Será que também os nossos grandes clássicos poderão vir a sofrer os mesmos tratos de polé? O Tal&Qual foi tentar perceber o que poderá esperar o público português.
“Uma afronta”
Para Pedro Sobral, administrador executivo do grupo editorial LeYa, “no caso das edições que são da nossa responsabilidade (Roald Dahl, Enid Blyton e Agatha Christie) não haverá nenhuma alteração e não prevemos fazer qualquer revisão aos livros. Quando qualquer editor da Leya propõe um livro para publicação, o que é relevante é a qualidade de escrita que esse editor encontrou. E essa qualidade obriga a manter o que o autor se propôs apresentar para edição. Mais ainda quando estamos perante autores que deixaram os livros com textos fixados, que já não estão vivos”.
O responsável da LeYa acrescenta ainda que “em Portugal não há a tradição de recorrer a ‘leituras de sensibilidade’ e não encontro nos editores portugueses predisposição para este tipo de condicionamentos”.
Porém, Pedro Sobral qualifica como preocupante a tendência, caso se torne norma. “Como editores acreditamos ser fundamental garantir a liberdade de quem escreve, de quem edita e de quem lê. Se houver quem encontre nestes livros algo que possa considerar ofensivo ou perturbante, tem sempre a possibilidade de não os ler. Limitar o acesso a estas obras nas suas versões originais é impedir que os leitores encontrem todo o imaginário extraordinário que as mesmas contêm, é condicionar a livre formação de opinião e interferir na criação do espírito livre de quem pode formar a sua própria opinião”.
E Sobral salienta: “Tratar os leitores como uma massa amorfa que só pode ler o que uns poucos acham correto é uma afronta a qualquer um que queira em seu próprio juízo aferir da qualidade e gosto (ou não) de um certo livro. Qualquer limitação da linguagem é uma limitação grave ao pensamento e à formação de uma visão crítica da sociedade. Este tipo de censura é típico de quem quer impor uma certa realidade e uma certa forma de estar. E qualquer ação censória deixa-nos preocupados, mas, também, mais firmes no nosso papel de editores, respeitando sempre a linguagem e o espírito que o escritor deixou no seu original”.
Também António Baptista Lopes, editor da Âncora, é taxativo: “Não temos situações dessas, mas se tivéssemos não faríamos qualquer alteração aos textos originais dos autores. O contrário seria um absurdo total”.
“Indefesos”
No Brasil, talvez devido à dimensão que ocupa no mercado de leitores do espaço lusófono, a situação é bem diferente. Segundo admite Ruy Castro, cronista semanal do T&Q recentemente admitido na Academia Brasileira de Letras, “muitas editoras aqui já têm pessoal especializado em farejar ‘incorreções’ nos originais que lhes são submetidos e propor alterações. Se fazem isso com os autores presentes, o que não farão ao reeditar os indefesos Camões e Pessoa ou os nossos Machado de Assis, João do Rio e Graciliano Ramos?”, interroga.
Jornalista e escritor de largos créditos e muitas obras publicadas, Ruy Castro confessa-se inquieto com a tendência. “É isto que me preocupa: saber que, em Inglaterra, as reedições ‘corrigidas’ estão sendo autorizadas pelos detentores dos espólios desses autores. É o sinal verde para que, em qualquer país, eles e todos os outros sejam adulterados”. Até porque não encontra qualquer razão atendível na alteração dos textos visados: “No que se refere ao que já está publicado, não há motivo. Conceitos ou palavras que eles tenham empregado podem estar ‘errados’, mas foi assim que escreveram e assim era o mundo na época. Uma nota introdutória deixaria isso claro para o leitor de hoje. Naturalmente, sou a favor de que os escritores atuais sejam mais atentos a certas questões e escrevam de acordo”. Apesar disso, o autor brasileiro não hesita em qualificar este movimento como “uma agressão à História. Não será corrigindo o passado que ele deixará de ter existido”.
“Censura e estupidez”
Para João Gonçalves, cronista semanal do T&Q e autor de vários livros sobre a sociedade portuguesa actual, “a literatura portuguesa é uma pequena literatura, periférica, em que são mais os que se supõem ‘autores’ e ‘escritores’ do que na realidade são autores e escritores. Com certeza que alguns desses quererão, mais tarde ou mais cedo, vingar-se dos verdadeiros autores e escritores (incluo poetas, ensaístas ou historiadores), embora tudo nos chegue sempre mais tarde, mais torto e mais torpe”.
Para Gonçalves, “a obra de arte literária tem uma autonomia inatingível. Tudo o que a rasure ou modifique, para não ofender ‘sensibilidades’ circunstanciais e ‘modistas’, mistura censura com estupidez. Em última análise, um crime. Nem Camões, nem Pessoa estão cá para defender direitos autorais, mas não estamos ainda todos loucos”, afirma o autor do blogue “portugaldospequeninos.blogs.sapo.pt”. E conclui: “É uma falácia oportunista, para não lhe chamar fascista”.
Quanto a um eventual triunfo do ‘wokismo’ em Portugal, Rita Ferro, também colunista regular do nosso jornal e uma das escritoras mais lidas da atualidade, considera que se trata de uma possibilidade muito remota: “Felizmente penso que não corremos esse risco. Tenho lido muita coisa sobre o assunto, da autoria de pessoas muito diferentes, e não encontrei nenhuma opinião favorável ao que se está a passar, bem pelo contrário”.
Rita Ferro recorda que já há anos testemunhou uma tentativa de ‘wokismo’ avant la lettre, quando o editor de sua avó, a escritora Fernanda de Castro, autora de uma série de livros juvenis intitulada ‘As aventuras de Mariazinha’ (entre eles ‘Mariazinha em África’), a informou “de que não ia reeditar o livro por conter referências racistas a um menino indígena chamado Vicente”. Mas Rita Ferro não crê no futuro dos ‘leitores de sensibilidade’ entre nós: “O passado é fascinante exactamente porque existe todo um contexto de época, com tudo de bom e de mau que teve”.