Elefante Branco
Em noite de casa cheia, um septuagenário de pé lança olhares demorados às meninas que passam. Cabelo branco, calças brancas, meias brancas, e por cima um casaquinho de malha escorrido com estampagem de cornucópias. A música frenética solta bafos de aventura. A certa altura o homem puxa o banco mais à mão e agarra-se a uma imperial já morta. É óbvio que lhe resta firmeza — porque ele ainda se entrega às chamas e o Elefante Branco está todo a arder.
“Sabes quanto dinheiro tem um gajo destes?”, pergunta o António, que há 25 anos bate todas as casas de alterne de Lisboa. Sentado ao nosso lado, com dois Hendrick’s já sorvidos, começa agora a dissertar. “O gajo pode pagar 300 euros para sair daqui com uma das miúdas, mas faz questão de dar mais. Não lhe fica a fazer falta. Isto é gente que não quer que elas peçam 300. Querem que elas digam mil. E ainda ficam felizes com isso”.
Quase três da manhã na casa de alterne mais conhecida do país — hoje no Conde Redondo e com novos gerentes, depois de uma época dourada na Luciano Cordeiro, aqui ao lado. O António vibra na ânsia de se deixar cair na armadilha, a gigante teia de aranha que atrai o pobre insecto. O álcool ajuda ao rumor de conversas e rituais bem medidos. Olhemos em redor.
Casados, solteiros e encalhados. Pobres, ricos e falidos. Há um jogador de futebol com t-shirt e calças de ganga muito apertadas. E mesmo ao lado repimpa-se um ‘dealer’ que faz pose de monarca. Passa uma brasileira em vestido vermelho colante e espantosas curvas cobiçadas, toda esculpida a bisturi. Raparigas novíssimas, loiras, negras, morenas — “belezas Swarovski”, como diria o escritor João Alves da Costa. Contam-se pelo menos 50 e talvez o dobro em homens.
Poderia ser uma discoteca comum, mas não é. Aliás, elas não dançam, saracoteiam-se de mesa em mesa, e por vezes atiram-se aos sofás agarradas ao telemóvel, assim matando o tempo até que chegue a sua vez. Duas loiríssimas ucranianas — dizem elas — vêm colar-se à nossa cara com conversa fiada “where are you from”. O António fura o ruído e não se cansa de repetir: “Isto não é prostituição, isto são acompanhantes de luxo”. Poder de síntese: “Aqui vens beber uns copos, escolhes a gaja, negoceias e sais com ela. Agora vê lá o que vais escrever no jornal!”.
Casa de Alterne
A pequena indústria do sexo pago em Portugal deixa a sensação de só se ver uma ponta do iceberg. Que será que se esconde atrás dos panos: apenas consumos e negócios — ou haverá mais? Talvez seja o imprescindível jogo da sedução a criar uma aura de mistério. Ou pode ser a consciência entranhada de tudo isto andar sempre nas bordas da licitude.
A princípio procurávamos tomar o pulso ao sexo comercial em época de crise. Mas a conclusão chegou depressa e arrumou o assunto: há mais gente no ramo, sobretudo brasileiras, os contactos e informações têm existência quase exclusiva na internet e os preços baixaram em relação aos últimos dois anos. Partimos para outra dúvida mais vasta — surgida até numa crónica de Rita Ferro para o Tal&Qual: “Com a facilidade de relações que há hoje, por que razão continuam os homens a pagar para ter sexo?”. A resposta não está fácil.
Que a prostituição ainda vive no tabu e nas meias-palavras, ninguém duvida. O que se ouve a quem pratica são histórias gloriosas ou tristes, com verdade e ficção bem enleadas. Quem se oferece sonha com dinheiro — ponto. Quem procura quer evadir-se ou sentir poder. Uns e outros com personagens à medida da situação e tudo o que dizem e fazem é potencialmente mentira.
Terça-feira de Verão em Castelo Branco. Um calor que derrete. Diz o taxista que muitas casas fecharam com a pandemia e é provável que o famoso Éden Place já não esteja a funcionar. Mas o homem não sabe bem, talvez só tenha ouvido dizer… Bem vistas as coisas, a terra é pequena e ele não sabe nada e esta conversa nunca existiu.
Num hotel virado para a Gardunha o esclarecimento vem de um empregado de bochechas encarnadas. “Há dois bares muito melhores que o Éden”. Apressa-se a fazer um bilhetinho com papel da caixa registadora: “Fina Flor” e “L&O”, escreve. E depois escabulha tudo em murmúrios: “O segundo tem quartos lá dentro. O primeiro não, mas há uma pensão mesmo ao lado”. Sendo assim, ignoremos as sugestões e vamos ao que ele diz ser o pior. O Éden não há-de escapar.
Havia outra recomendação de quem conhece o meio. Tinham-nos falado do Kopas, na serra algarvia, isolado junto a um pinhal na berma do IC1. É no sítio dos Queimados, que pertence a São Marcos da Serra, concelho de Silves. O edifício não é recente, mas como casa de alterne tem poucos anos. Foi bar-restaurante e depois salão de baile, sempre com habitação no piso de cima, que hoje fornece quartos para a actividade. Diz-se que os da zona frequentam pouco, mas quem vai de viagem costuma parar.
Acabámos no Éden Place de Castelo Branco por um acaso. E ali entrámos pela uma da manhã. Casarão azul e branco com patroa rija que vem à porta ver quem chega — até porque a noite está fraca. A desconfiança inicial dá lugar a uma simpatia “tu cá, tu lá”. Nacional 18, a 10 minutos do centro da cidade. No respectivo Facebook tinha aparecido dias antes uma imagem com edificante legenda: “A pior puta é aquela que se faz santa!”.
É uma interminável hora e meia que se segue. Um ou dois homens estrategicamente escondidos nos sofás do fundo que têm costas altas e não deixam ver quem está. Há mesas de snooker e luzinhas a condizer com tanta discrição. O charme do sítio é bruto. As mulheres parecem aborrecidas, sem horizonte, e nada das impensáveis idades do Elefante Branco.
Uma delas vem à mesa. E há-de beber duas, três, quatro bebidas. “Tenho sede, posso pedir?” A conta não vai passar os 30 euros. É uma brasileira vivida dos seus 45 anos, alta, maquilhada, perfumadíssima. Afiança que só faz companhia, nunca se envolve, e vai contando histórias. Uma longa partilha sem fim, só para derreter corações. “Quando comecei, queria morrer. Hoje faço com gosto. Mas há homens que não conseguem ter dois dedos de conversa, dizem sempre a mesma coisa. Mas o meu projecto é sair daqui muito em breve, já tenho um dinheiro de parte e preciso de voltar à minha família lá no Brasil”. Ao fundo os Calema cantam “saudades de bô”.
Massagens
Noutros cenários há maquilhagem e conversa a disfarçar intenções. Aqui tudo se passa num ápice e ninguém tem tempo a perder. É como na rua, onde as transexuais continuam a oferecer serviços à esquina — pegar ou largar.
Com porta virada para uma mercearia e um café com esplanada, a casa de massagens é uma atracção para a vizinhança do Campo Grande, que obviamente espreita e comenta o entra e sai à luz do dia. Uma mulher decidida, com ‘leggings’ e t-shirt de quem vai agora para a aula de zumba, leva-nos escadas abaixo a debitar instruções inúteis e abre a porta de um gabinete na penumbra.
“Já sabe ou quer apresentação?” A “apresentação” é um desfile de mulheres. Uma a uma, à vez, abrem a porta do gabinete e vêm dar cumprimentos, como um catálogo de carne o osso — e depois dos beijinhos mais duas ou três palavras simpáticas retiram-se e dão a vez à próxima. Aparecem sete ou oito.
No fim, a mulher decidida não vai de modas. Regressa sozinha ao gabinete e pede acção: “E então, qual vai ser”. Ouve o nome Yara e alça da tolha de banho que já traz na mão. “Pode-se despir e entrar para o banho”. Assim, como uma ordem que não consente debate. O duche é no quarto, com poliban ladeado por vidro e gel de banho Continente. Nem 10 minutos se passaram já surge Yara com uma embalagem de óleo Johnson’s, duas velas e vontade crua de trabalhar. Nem uma palavra. Os 100 euros por 30 minutos não incluem preâmbulo.
Ainda longe dos 25, Yara é uma colombiana de olhar tímido que não fala português e não quer responder a perguntas. Tal como as dançarinas de ‘night club’, que se esmeram encostadas ao varão ao som de rappers depressivos, esta profissional dispõe-se a executar sem mácula. Mas ao terminar desfaz logo a personagem e desata num afã para arrumar o gabinete e ir tomar um banho, que o próximo cliente já está à espera. Definitivamente, esta vida não é para meninas.
Atendimento em casa
Um anúncio na internet exibe a “morena safadinha” que atende no apartamento. “Pele macia como pêssego em ambiente climatizado”. Uma hora são 30 euros. É num prédio normalíssimo frente à estação de comboios de Benfica. Abre-se a porta: “Boa noite, amor”.
É uma mulher baixa e roliça, claramente em forma na curva dos 50. Ostenta tacões altos e um vestido preto de alças com lantejoulas prateadas no decote. Um aparelho portátil de ar condicionado gela o cubículo que cheira a ambientador de supermercado. Na mesa de cabeceira despontam toalhetes húmidos, fracos de creme, preservativos e telemóveis — cinco telemóveis, que correspondem aos diversos anúncios e personagens que veste. É um espaço modesto sem ser decadente. Guarda-fatos, cadeira e televisor — ligado sem som num canal qualquer, em cima de uma mesa com naperons.
Ela fala muito, voluntariamente, sobre tudo o que se queira. Faz suspeitar de um velho hábito: os clientes não vêm apenas para o óbvio, muitos só querem 60 minutos de desabafos. E de repente vem à memória uma conversa com o António numa visita ao BodyClub, outros dos clubes nocturnos de Lisboa que ele tão bem conhece. “O gajo já disse a mesma coisa mil vezes à mulher, ela já não o pode ouvir, ele não a pode ouvir a ela. Como é que ele consegue desabafar? Com as acompanhantes. Paga para falar. E depois há outra coisa: quando pagas, sentes que tens mais algum poder sobre uma mulher. Na verdade, não mandas nada porque elas é que decidem tudo, mas tens essa ilusão. Isto é tudo uma ilusão, uma brincadeira. Lá fora, a mulher é difícil, aqui faz o que tu queres”.
A “morena safadinha” prossegue. A irmã também é prostituta e traiu-a ao ver que fazia menos dinheiro. Chegou a fazer a inventar histórias só para desqualificar a mana e foi contar tudo à senhoria. Mais um pormenor impagável: “Vim do Brasil porque o meu marido não me dava atenção, já não tínhamos relações há anos. Sentia-me humilhada. Acabei aqui a fazer sexo por dinheiro, mas estou bem, sou independente, já não vivo deprimida”.