DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Desvario e bom senso

Dos repolhos aos iogurtes, passando pelos detergentes e pelo calçado, a procura por produtos considerados naturais tem aumentado exponencialmente nas últimas duas décadas. A sua produção é associada a uma pegada ambiental mais reduzida. Cresceu também o número de empresas e negócios a querer entrar neste mercado. Muitos estão preocupados com a saúde e com o planeta. Outros são apenas movidos pela rentabilidade do negócio
Patrícia Bentes

A moda do saudável e do sustentável

Idalina dirige-se à caixa e no cesto das compras levas iogurtes probióticos com ingredientes biológicos. O produto estará repleto das mesmas bactérias que vivem nos intestinos e que em doses recomendadas serão benéficas para a saúde. “Eu não sabia. Sabia que 80% do nosso sistema imunitário está no intestino, mas parece também é bom para a memória cerebral”, explica Idalina, de 83 anos, ao dono da loja, João Cabral. Ela leu tudo numa revista sobre saúde sénior, da qual é leitora habitual. “Sempre me interessei. Não é só agora”, sublinha, enquanto coloca as compras nas caixas de cartão que João tem sempre à entrada da loja — uma alternativa aos sacos de plástico.

O mercado de produtos biológicos não será uma novidade para consumidores como Idalina que, por ter trabalhado toda a vida num hospital — e por ter crescido num tempo em que a regra era uma produção mais sustentável e sem escala industrial — conhece bem os ovos das galinhas criadas ao ar livre ou o sabão de Marselha, que esta loja, em Cascais, também vende. É bem provável que em tempos idos Idalina tenha recorrido àquele sabão originário do século XVII para coisas tão diferentes como lavar a loiça, a roupa e até mesmo o cabelo. É feito à base de óleos vegetais, dispensando fragrâncias corantes e conservantes. Mas ao contrário do que acontece com a cliente, para João Cabral, e para os um vasto número de consumidores, 400 anos depois da invenção do sabão, o passado parece surgir como uma descoberta. O ‘último grito’ das tendências de consumo.

Em Portugal, os dados mais recentes do Observatório Nacional de Produção Biológica — um organismo do Estado — revelam que em 2019 mais de metade dos vendedores destes produtos registou em média uma facturação entre 100 mil e 500 mil euros. Em 2015, a maioria não facturava mais que 100 mil euros. O crescimento reflectiu-se em todas as variáveis — mais consumidores, mais produtores, mais vendedores, maior diversidade de produtos.

João Cabral foi dos primeiros a apanhar este comboio do regresso ao passado. Nascido e criado na região de Abrantes, onde os avós tinham uma quinta, veio estudar para Lisboa no fim dos anos 80. Já nessa altura, conta-nos, dava muita importância à qualidade do que comia, lendo e pesquisando sobre o assunto. A preocupação com a nutrição acabaria por ditar a sua saída do gabinete de hidráulica do Instituto Superior Técnico, onde ainda trabalhou alguns meses a seguir à licenciatura. Foi parar à Biocoop, uma das primeiras cooperativas de consumidores de produtos de agricultura biológica. Na prática trata-se de um sistema de produção de alimentos que privilegia o recurso a técnicas que garantem a sustentabilidade e a utilização de recursos locais. Procura-se a preservação dos solos, do meio ambiente e da biodiversidade, evitando o recurso a produtos pesticidas e herbicidas sintéticos. “Era muito difícil arranjar produtos naquela altura. Decidi que, se queria realmente preocupar-me com a minha alimentação, a única forma que tinha de assegurar estes alimentos era ir trabalhar para esse espaço”, conta o comerciante.

Foi nesses anos que passou como um dos responsáveis da Biocoop — à época situada junto ao Largo do Rato —, que João Cabral começou a aperceber-se das mudanças no mercado. No início dos anos 2000, a loja Biocoop chegou a facturar à volta de 26 mil euros numa só manhã de sábado. Era a única loja do género na capital e só abria alguns dias por semana, pelo que as pessoas se apinhavam ao fim-de-semana.  O comerciante assistiu também às mudanças no perfil dos consumidores que atendia. Já não eram só macrobióticos, vegetarianos e veganos. “Cerca de 30% dos novos clientes eram doentes oncológicos ou tinham doenças graves. A classe médica começou a recomendar isto como tratamento para esse tipo de doenças”, explica. E foi também nessa altura que João recebeu vários convites para ajudar na abertura de outros espaços comerciais, até que em 2014 decidiu aplicar os 18 anos de experiência no seu próprio negócio — a BioShop, em Cascais, que o Tal&Qual agora visitou.

 

 “Ai querem tofu, então vamos ter tofu”

Se o panorama já é hoje muito diferente do de há 20 anos, imagine-se em comparação com 1985, quando Eugénia Horta Varatojo e o marido, Francisco Varatojo, decidiram fundar em Lisboa o Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP). Eles e os filhos eram macrobióticos e queriam dar formação e aconselhamento a qualquer pessoa. “Não havia ainda muita abertura para coisas novas e naturais, as pessoas não tinham muita consciência e nem queriam saber muito”. Além disso, “não havia esta panóplia de informação, de literatura e mesmo de ingredientes para cozinhar. Tínhamos de usar muito mais a criatividade porque não havia nem metade dos produtos. Cozinhávamos com o que tínhamos e íamos reinventando”, confessa-nos Eugénia Horta Varatojo, que enaltece o legado deixado pelo marido, Francisco Varatojo — falecido em 2016, o principal divulgador da filosofia macrobiótica em Portugal. “O Francisco foi espalhando a palavra, tanto em Portugal como no estrangeiro, e cada vez mais pessoas começaram a ter uma consciência diferente. Começou a fazer sentido para elas comerem de outra forma, viverem e serem mais sustentáveis e mais conscientes das escolhas no dia-a-dia”, recorda Geninha, diminutivo por que é conhecida no meio.

Curiosamente, 40 anos depois de fundar o IMP — que actualmente é gerido por Mónica Deus Dias, Marta Oliveira Costa e o Afonso de Sousa e Silva, a quem foi cedida a marca —, é a própria Geninha Varatojo quem sugere que o caminho feito até aqui terá sido demasiado rápido e que seria preciso recuar um pouco para encontrar algum equilíbrio nesta busca incessante pelo elixir da saúde. Geninha não tem memória de existirem tantos doentes celíacos ou alérgicos: “Acho mesmo que não havia. Uma coisa é uma pessoa ter uma alergia e ser celíaca, outra coisa é decidir que agora não quer nada com glúten. O glúten nunca foi um problema. Não sou radical. Nunca fui na minha vida. No meio disto tudo há pessoas que fazem uma alimentação mais equilibrada, com bom senso, e depois há sempre pessoas que gostam de ser extremas o ponto de não quer comerem isto, de não fazerem aquilo”.

Mas porque é que tantos passaram a adoptar dietas não convencionais? Será efeito do marketing? Responde Geninha Varatojo: “Nota-se perfeitamente nos supermercados. As grandes superfícies não são tolas e estão atentas ao mercado e à comercialização do que lhes interessa. ‘Espera lá que eles agora querem beber leite de aveia. Vamos embora.’ Anda muita gente a comer tofu. ‘Ai querem tofu, então vamos ter tofu’”, resume.

Marco Fonseca, cozinheiro, consultor e professor de macrobiótica, encontra três explicações para o fenómeno. Em primeiro lugar, as questões ambientais. “As pessoas começaram a perceber que a produção de alguns alimentos cria muitos problemas ambientais e há grandes empresas neste momento a promoverem campanhas para divulgar este tipo de informação”, nota. Além disso, o especialista encontra a origem do crescimento do consumo de produtos biológicos na também crescente consciencialização de que a saúde está associada à alimentação: “Sabemos hoje que grande parte dos problemas de saúde tem origem nos hábitos alimentares. A ciência ligada à nutrição tem caminhado neste sentido e a classe médica tem acompanhado”.

A terceira explicação dada por Marco Fonseca assenta na ideia de que há um efeito de mimetização. Ou seja, o fenómeno é também cultural e social. O chef recorda a propósito que, no passado, o consumo de alimentos como a carne só era acessível às classes privilegiadas — e só nas últimas décadas se foi democratizando. O que está acontecer agora é um comportamento idêntico, explica: “As classes altas têm maior capacidade de compra e podem aceder aos produtos biológicos. A hotelaria para um público com mais dinheiro está muito vocacionada para este tipo de alimentação. E o grande público começa a olhar para isto como uma moda e a copiar o exemplo e o estilo de vida”.

A corrida rumo ao biológico — e a produtos considerados saudáveis, naturais, ecológicos — fez-se do lado dos consumidores, mas também dos vendedores, confirma João Cabral. “Pusemos o carro à frente dos bois. Neste momento há lojas a mais para consumidores a menos. Houve muita gente sem experiência na área e sem grande conhecimento que se pôs a abrir lojas. Há coisa de cinco anos abriam para aí umas 10 e fechavam outras 10 por ano. Agora está um bocadinho mais controlado e a evolução mais consolidada. Mas ainda acho que há lojas a mais”, diz-nos, num desabafo, constantemente interrompido pelo telefonema do cliente que pergunta pelo azeite biológico e do outro quer saber como são feitos os detergentes. Algumas das lojas que abriram há coisa de duas décadas acabaram por ser absorvidas pelas grandes superfícies comerciais — caso da Sonae, que comprou a cadeia Brio e Go Natural. Aliás, hoje quase todos os super e hipermercados têm secções exclusivamente dedicadas aos produtos de origem biológica.

A loja de João Cabral parece não se ter ressentido com a evolução do mercado. A conversa é pontuada pelo entra e sai constante de clientes, portugueses e estrangeiros, que se dirigem ao vendedor sempre num tom familiar. Diz-nos ele: “As pessoas querem ter uma pessoa a quem atribuir responsabilidades se as coisas correm mal. A confiança passa por aí. Isso não existe numa grande superfície, onde há o anonimato dos empregados e não há comunicação directa”. O regresso ao passado, acrescenta, não se limita ao tipo de produtos procurados. As pessoas querem reviver o passado do velho merceeiro. “Tenho aqui clientes que vêm cá todos os dias. Levam pão, verduras e frutas. Produtos do dia-a-dia. São clientes de proximidade. Muitos vêm a pé. A loja polariza grande parte dos bairros à volta.”

 

“Não tendo estufa, não temos espinafre”

O mesmo se diga dos pequenos mercados de rua que reúnem, um pouco por todo o país, vários pequenos produtores. João Cabral foi um dos responsáveis pela instalação dos primeiros, em Lisboa, e considera que a ideia está hoje desvirtuada. “No início esses mercadinhos só lá tinham produtores com três ou quatro frutos. Com o aumento da dimensão dos mercados começou a haver maior procura de produtos e quem lá está começou a comprar coisas para acrescentar à sua oferta. Em pouco tempo, todos começaram a perceber que era muito mais fácil comprar e vender do que produzir”, lamenta o comerciante, que garante que a maioria do negócio que ali é feito assenta na importação e não em produtores locais. O facto é que a agricultura biológica sai muito mais cara aos produtores do que a tradicional porque, sem químicos de síntese, está muito mais exposta a pragas e oscilações atmosféricas.

No mercado do Parque das Nações, em Lisboa, Filipe e Rita, de 23 e 21 anos, são a excepção que confirma a regra. A família dele entrou nisto por causa do pai, “que plantava umas coisas no quintal”. Actualmente têm uma quinta em Palmela, com cerca de 2,5 hectares, onde produzem hortícolas, frutícolas, etc. Quem ali costuma estar a vender é a mãe, aos sábados de manhã. “É uma empresa familiar”, explica-nos. “Distribuo ao domicílio. O meu pai trata da quinta e a minha mãe vende aqui. É mais comercial e lida com os clientes”.

O relato de Filipe sobre o que tem sido o crescimento desta moda em que se transformou o comércio de produtos biológicos vai ao encontro do que nos tinha explicado o comerciante de Cascais: “É uma área que requer muito esforço e muito sacrifício. Acordei às quatro da manhã porque muitas destas coisas têm de ser apanhadas no próprio dia. Grande parte das pessoas não está disposta a isto. Experimentam durante uns tempos, mas acabam por desistir”. Além deste esforço, há ainda o peso dos custos, consideravelmente superiores para quem opta pelo modo de produção biológico. “Tudo o que aqui está é feito na rua. Não temos estufa porque queremos cingir-nos ao produto da época. É isso que o biológico nos traz. E não tendo estufa, não temos espinafre. Morreu todo com o frio, infelizmente.” Apesar disso, e da inflação galopante que o país atravessa, Filipe garante que os preços expostos na ardósia se mantêm inalterados. Mas a constatação explica porque é que tantos passaram a dedicar-se exclusivamente à revenda, abdicando da produção. “Há muitos intermediários que nos compram a nós para venderem ao cliente final. Apareceram muitas plataformas ultimamente a fazer isso. Todos os dias recebemos duas e três chamadas de empresas de revenda”, admite.

 

‘Verde’ mas pouco

Além da saúde, outra das razões que levam tantos a apontar em direcção à produção biológica tem que ver com as crescentes preocupações ambientaisA consolidação de novos conceitos como o veganismo não surgiu só associada à alimentação. Nem a consolidação, nem os mitos associados ao marketing que catapultou este sector.

Adriana Mano é dona de uma loja de calçado vegano, que abriu há quatro anos perto da Sé de Braga. Os sapatos que vende são feitos com materiais sustentáveis, e as solas compostas por lixo marinho recolhido na costa portuguesa. Tal como Geninha Varatojo ou João Cabral, Adriana avança rapidamente para um princípio de conversa com o T&Q: “Há muito falso sustentável. O nosso projecto não é ‘greenwash’, garante”. ‘Greenwash’? “Basta usares um material que é mais amigo do ambiente e já dizes que aquilo é sustentável, mesmo que seja feito não sei onde, que venha de barco e que polua imenso. Acaba por ser tudo um grande ‘greenwash’ porque quando vamos ver a pegada não é nada do que parece. Na prática fazem tudo no mesmo sítio, com as mesmas colas, etc. Nós usamos colas à base de água. Vamos ao pormenor”, justifica Adriana Mano.

A falta de enquadramento legal em Portugal, afirma, contribui muito para que assim seja. A empresária defende, por exemplo, que seja aplicada uma taxa de IVA mais baixa a produtos amigos do ambiente, à semelhança do que acontece noutros países da Europa, ou que se penalize quem vende gato por lebre.

Apesar das críticas, Adriana Mano reconhece que nem todo o branqueamento no sector ‘verde’  parte de uma intenção oportunista de enganar o consumidor. “Há ‘greenwash’ com má intenção e depois há pessoas bem intencionadas que não sabem o que estão a fazer e se metem em negócios que não conhecem. Acabam a oferecer coisas que pensam que são muito boas e não são. Há de tudo”. Este “tudo” resulta também do facto de haver ainda um longo caminho a percorrer no desenvolvimento de materiais e práticas menos castigadoras do planeta. “Não existem materiais veganos para a chuva. Há agora biomateriais, como pele de ananás ou de maçã, e temos isso tudo na nossa linha, mas apesar de as pessoas ficarem muito encantadas com esse tipo de materiais, eles, para serem resistentes, têm de levar uma percentagem de polímero”, explica. Ou seja, pode dizer-se que aquele sapato é mais amigo do ambiente, por não ser 100% feito de plástico, mas na prática… Conclui a empresária: “Quem disser que tem um sapato 100% sustentável, mente. É impossível. Fazemos o mais sustentável possível”.

Texto alterado em relação à edição imprensa do Tal&Qual de 14/12/2022, com atribuição correcta da frase “Nota-se perfeitamente nos supermercados…”.