Começam a ouvir-se os primeiros acordes da canção ‘Como Nossos Pais’, celebrizada por Elis Regina em 1976. Surge então Maria Rita a cantar, ao volante de uma carrinha elétrica da Volkswagen. Segundos depois é a própria Elis Regina, recriada através de Inteligência Artificial (IA), que aparece ao volante de uma carrinha antiga da mesma marca — ao lado da filha. Nisto, juntam-se as duas vozes e dá-se um dueto inédito e improvável: mãe e filha cantam ao mesmo tempo, apesar de isso nunca ter acontecido na vida real. Maria Rita era uma criança em 1982, quando a mãe morreu, aos 36 anos. Com a IA, elas estão lado a lado!
O anúncio publicitário surgiu em inícios de julho para assinalar os 70 anos da Volkswagen no Brasil e está a gerar controvérsia pelo facto de Elis ser recriada através de IA — com recurso a uma técnica conhecida como ‘deepfake’, ou ‘falsificação complexa’. E também pelo facto de a marca ter colaborado com a ditadura militar brasileira — o que levou a Volkswagen a aceitar em 2020 acordos extrajudiciais de quase sete milhões de euros para compensar antigos empregados de quem a empresa forneceu informações à polícia política, tendo até permitido torturas e prisões sem mandato dentro das suas instalações no Brasil, sobretudo entre 1969 e 1979.
Ora, como é do conhecimento geral, Elis Regina era abertamente contra o regime e hoje talvez ficasse com os curtos cabelos em pé ao ser associada a esta marca. “Se fosse viva, tenho seríssimas dúvidas de que entrasse nisto”, comenta ao Tal&Qual o músico Tozé Brito, que conheceu a mítica cantora brasileira no Festival da Canção de 1978. Nesse ano, Elis foi convidada a fazer parte do júri e deu ainda um miniconcerto, no fim do festival, no Teatro Villaret, em Lisboa.
Legalmente está tudo certo. Todos os filhos de Elis — João Bôscoli, Pedro Camargo e Maria Rita — assinaram a documentação relativa aos direitos de autor e de imagem, para que a voz e a imagem da mãe pudessem ser usadas no anúncio. Sendo eles os herdeiros legais, têm direito a fazê-lo. Quem o afiança é Tozé Brito, que está na vice-presidência da Sociedade Portuguesa de Autores. “A partir do momento em que a pessoa morre, os herdeiros dispõem da possibilidade de usarem os direitos de autor e de imagem e não há nada de errado nisso. Se a filha diz para usarem a imagem, e até aparece no anúncio, legalmente está tudo bem”, acrescenta o músico.
No Brasil, as dúvidas que se têm colocado são sobretudo éticas. Por isso, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) abriu um processo de inquérito. Muitos brasileiros estão chocados por verem a imagem de uma pessoa que já morreu aparecer como se ela estivesse viva — a fazer um dueto que ela nunca gravou, na verdade. Aliás, o CONAR abriu o inquérito depois de muitos consumidores se queixarem e questionarem sobre se seria “ético ou não o uso da IA para trazer uma pessoa falecida de volta à vida”.
Uma homenagem que rende
Entre nós, Gil do Carmo, filho do histórico Carlos do Carmo, está do lado de Maria Rita. Ele próprio se vê a fazer algo do género. “Faria de certeza”, garante. “Enquanto filho de uma pessoa tão importante para a cultura portuguesa, como é Maria Rita em relação a Elis Regina no Brasil, acho que o meu pai iria ficar comovido. E a Elis também ficaria”, acrescenta o músico português.
Gil do Carmo reforça o seu apoio a esta ideia de usar a IA para ‘ressuscitar’ alguém que já partiu e fazer um dueto com essa pessoa. “Não me choca nada. Já gravei o ‘Fado do Cacilheiro’ e ‘Um Homem na Cidade’. Se puséssemos o meu pai, já falecido, a cantar comigo através da IA, algo que ele realmente gravou, não acho que fosse criminoso”.
Para o filho de Carlos do Carmo, só não seria admissível usar a IA para recriar a voz do pai em algo que ele não tivesse gravado. “Inventar é que não me parece honesto. Nunca poria o meu pai a cantar uma coisa que nunca cantou”. O filho do fadista dá o exemplo de algo que, isso sim, lhe parece “chocante”. “Os Beatles lançaram a primeira música com IA total. Isso para mim é que é criminoso. Ou seja, não sei se o George Harrison e o John Lennon, estejam eles onde estiveram, ficaram contentes com aquilo que os que que estão vivos [Paul McCartney e Ringo Starr] fizeram. Porquê? Porque eles não cantaram aquela música, isso é que é uma deturpação total da realidade e não é bonito”.
Gil vê no anúncio gravado por Maria Rita “uma comovente e maravilhosa homenagem à mãe”. E vai até mais longe. Apesar de a história revelar que Elis Regina era frontalmente contra o sistema capitalista, mas também contra a ditadura brasileira, com a qual a marca automóvel esteve envolvida, acredita que a cantora ficaria feliz na mesma. “Sendo a Elis o génio que era, só iria ficar contente por ver naquele anúncio, feito a partir daquela música, que é uma obra de arte, mais uma forma de sustento para a filha e os netos”.
Quem balança quando toca a este assunto é Lídia Muñoz, neta da diva do teatro português Eunice Muñoz. “Perdi a minha avó há pouco tempo e custa-me muito pensar numa coisa destas”, avança a atriz ao T&Q. “É um assunto mesmo muito delicado”, qualifica. Tão delicado que, do outro lado do Atlântico, a polémica está longe de terminar, sobretudo porque se trata de usar a imagem de uma pessoa morta para vender um produto. “Eticamente, no caso do anúncio da Volkswagen com a Elis, acho péssimo estarmos a levar as pessoas a comprarem um produto, usando a imagem de uma pessoa que já morreu”, corrobora Tozé Brito.
Gil do Carmo remata: “O uso que se pode dar à IA pode ser assustador, mas quando esta é posta ao serviço da arte, acho que é lindíssimo. E, neste caso, é um tributo de uma filha que é brilhante a uma mãe que também era brilhante. Posso dizer-lhe que quando vi o anúncio quase chorei”.