Em 2004, no Marco de Canavezes, norte de Portugal, uma rapariga se queixava comigo a respeito da mais ilustre filha da região, Carmen Miranda. “Foi para o Brasil e nunca mais cá voltou”, ela disse, com uma ponta de ressentimento.
Tentei contemporizar dizendo que, na verdade, Carmen nunca saíra de Portugal — que, ao se mudar para o Brasil, com dez meses de idade, em 1909, viera para a segunda maior cidade de população portuguesa no mundo, que era o Rio, só perdendo para Lisboa. E, de fato, naquela época, por causa da emigração, havia no Rio mais portugueses natos do que no Porto. Mas ela não ficou muito convencida.
Os portugueses, por mais que gostassem de Carmen, sempre a viram como brasileira. Os brasileiros também a viam como brasileira, exceto meia dúzia de jornalistas rancorosos dos anos 40 e 50. Pena que esses poucos jornalistas escrevessem em veículos influentes, como a revista O Cruzeiro, e, no futuro, tivessem suas opiniões levadas a sério por pesquisadores que as tomaram como retratos da expressão popular.
A brasilidade de Carmen era tão flagrante que, para atacá-la, eles lhe jogavam no rosto o fato de ter nascido em Portugal, como se isso fosse um problema. Uma agressão que os argentinos pouparam a Carlos Gardel (nascido na França), os americanos a Al Jolson (nascido na Rússia) e os franceses a Yves Montand (nascido na Itália). E todos não sabemos que gato que nasce em forno não é biscoito?
Para mim, e daí se Carmen era portuguesa ou brasileira? O que importa é o fato de que ela nos tornou mais brasileiros, numa época — começo dos anos 30 — em que todas as nossas cantoras tinham um sotaque lírico, com trinados de opereta. Ao ouvir Carmen no rádio e nos discos, cantando ‘Taí’, ‘Camisa listada’ ou ‘…E o mundo não se acabou’ — com aquele molejo, picardia e malícia na voz —, os brasileiros daquele tempo podiam finalmente se reconhecer: “Sim, é assim que nós somos. Nós somos assim”.