DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Eles adoram o cheiro do poder

ERC quer mandar calar ‘sites’ e plataformas
Com o regulador dos média reduzido a três pessoas, e todas elas com mandato caducado, eis que dali sai uma proposta dirigida ao Parlamento para dar um poder musculado à ERC: decidir o que são conteúdos que ameaçam a saúde e a segurança
Bruno Horta

Corria a quentura de Julho — metade do país a banhos, outra metade a arrastar-se ainda na rotina de trabalho — quando uma entidade reguladora decidiu que estava na altura, por sua iniciativa, de enviar aos senhores deputados duas propostas para alterar leis. Em bom tempo o fez, é evidente, e com a toda a propriedade. Até porque a 30 de Junho tinham sido conhecidos novos nomes para substituírem os actuais dirigentes da entidade, que neste momento são apenas três e têm o mandato caducado desde Dezembro — com a lei a mandar que sejam cinco, mas um faleceu no ano passado e outro pôs-se ao fresco da renúncia assim que foram conhecidos os senhores que se seguem.

Aliás a Assembleia da República teria a sua última reunião plenária a 20 de Julho, com regresso marcado para 15 de Setembro — o que torna ainda mais adequado o envio das tais propostas a 14 de Julho. E assim aconteceu. Os portugueses, que pagam isto tudo, ficaram a saber 10 dias depois através do site do regulador. Estamos a falar da ilustríssima Entidade Reguladora para a Comunicação Social, claro.

“Não é nada normal que enviem propostas destas no actual contexto” em que a liderança da ERC está de saída, comenta-nos um antigo membro do regulador dos média. Pede para não ser identificado e acrescenta: “Há legitimidade para fazerem propostas destas aos deputados, mas seria curial que esperassem pela tomada de posse de novos membros”. Assim esperaste tu, assim esperaram eles.

As duas propostas versam a Lei da Rádio e a Lei de Imprensa — dois diplomas fundamentais para a liberdade de imprensa. É na segunda que está o ‘filet mignon’. “A presente proposta tem como primeiro propósito alargar o âmbito de aplicação da Lei de Imprensa ao ambiente online, conferindo base legal inequívoca para diferentes abordagens normativas”, lê-se no texto assinado pelos senhores reguladores caducados João Pedro Figueiredo, Fátima Resende Lima e Francisco Azevedo e Silva (na foto).

Avancemos no documento. Que quer a ERC em matéria de “ambiente online”? Quer mandar mais, esticar o seu bracinho normativo, desenrolar a língua para tragar tudo o que mexe — sob a justificação de que regula. Regula muito, regula tudo, até ao expoente de não sabermos quem a regula.

Ganhemos fôlego para esta passagem da proposta de alteração enviada ao Parlamento: “A ERC pode restringir a circulação de publicações electrónicas sob jurisdição do Estado português que lesem ou ameacem gravemente qualquer dos valores previstos no n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de Janeiro, devendo os prestadores intermediários de serviços assegurar, num prazo de 48 horas a contar da sua notificação, o bloqueio do acesso às publicações em causa, através de procedimento que assegure que a restrição se limita ao que é necessário e proporcionado e que os utilizadores são informados do motivo das restrições, sem prejuízo de recurso judicial”.

É isso mesmo. A ERC quer o poder de mandar apagar, no todo ou em parte, sites e plataformas digitais, com base em pressupostos retirados da Lei do Comércio Electrónico, de 2004, que resulta da transposição de uma directiva europeia. E diz esta outra lei que “podem ser adoptadas medidas restritivas à circulação de um determinado serviço” se este puder “lesar ou ameaçar gravemente a saúde pública; a segurança pública, os consumidores”, etc.

Quem decide o que é uma ameaça à saúde ou à segurança: tribunais, poder judicial, órgãos de soberania? Para quê, se a liberdade de expressão pode ser ceifada em privado por cinco personagens obscuras de uma entidade administrativa chamada ERC?

 

Para a ERC, tudo normal

A apresentação pela ERC das propostas de alteração à Lei da Rádio e à Lei de Imprensa “é o culminar de um longo processo conduzido no seio da ERC, com consultas institucionais ao sector” dos média, justifica a entidade reguladora em resposta ao T&Q, que enviou perguntas sobre a legitimidade ética dos três membros do Conselho Regulador da ERC para se dirigirem à Assembleia da República quando já têm mandatos caducados desde Dezembro. “Relembramos também que no Plano de Actividades definido pela ERC para o ano 2023 o regulador já dava nota que ‘a ERC estará atenta ao processo legislativo de alteração da Lei de Imprensa’”, refere. “Aliás, em audições parlamentares ocorridas no final de 2022 e no primeiro trimestre de 2023, questionaram o Conselho Regulador sobre a proposta da Lei de Imprensa, tendo-se este Conselho comprometido a apresentá-la até ao final do semestre”. Mas quanto à Lei da Rádio, parece não haver contexto para propostas de alterações. Finalmente, segundo a ERC, “os três membros do Conselho Regulador em efectividade de funções continuam a assegurar a regularidade de funcionamento deste órgão e das decisões, não sendo adequado considerar-se que as decisões são menos válidas”.