DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Família Amorim ganha com aeroporto

Mal se sussurrou nos corredores do poder que o campo de tiro de Alcochete era uma das opções para a localização do aeroporto, amigos de Cavaco Silva, todos muito chegados ao BPN, atiraram-se a comprar a herdade de Rio Frio. Estoirou a crise financeira. Os devedores dos bancos faliram. Os terrenos acabaram por ir parar à família Amorim – que não cobiçou apenas os 2.600 hectares de sobreiros tão valiosos para o negócio da cortiça, mas também consideráveis mil hectares de casario que um aeroporto ali mesmo ao lado transformará num bem precioso
Manuel Catarino

Cavaco Silva, homem escrupuloso e preocupado com a causa pública, não se cansou de alertar o primeiro-ministro José Sócrates, ainda em 2005, para o risco da construção de um novo aeroporto sem fazer contas aos custos e benefícios de tão assombroso investimento. Sócrates tomara posse havia escassos meses e herdara a decisão, tomada ainda no tempo do último Governo chefiado por António Guterres, de lançar a obra na Ota, em pleno Ribatejo. Cavaco falava amiúde, como se fizesse prova de vida, posicionando-se na linha de partida para as eleições presidenciais. Seria eleito no ano seguinte. Como quem não quer a coisa, do alto do seu prestígio de zeloso administrador da fazenda, aconselhava a que se ponderasse outra localização.

Nesta altura, quando falou sobre o novo aeroporto, Cavaco Silva já sabia que a Confederação da Indústria Portuguesa (hoje, Confederação Empresarial de Portugal) tinha encomendado à Universidade de Aveiro um estudo sobre uma alternativa à Ota – e também não ignorava a preferência da CIP, então presidida por Francisco Van Zeller, pelo campo de tiro de Alcochete.

Cavaco, ainda candidato presidencial, mandava recados ao Governo recém-empossado: “Investimentos como os do novo aeroporto da Ota só devem ser realizados se a totalidade dos benefícios for maior do que os respetivos custos. Espero que seja feito um esforço para um consenso político tão amplo quanto possível”. Mal sabia ele que o seu amigo e parente Fernando Fantasia, o rei do imobiliário Emídio Catum e a administração do Banco Português de Negócios (BPN), sob a rédea de Oliveira e Costa, já tinham chegado a um ‘amplo consenso’ sobre o que podiam lucrar com a especulação de terrenos à volta do campo de tiro se o aeroporto fosse construído em Alcochete. As estrelas alinhavam-se na perfeição para favorecerem um grande negócio.

O BPN – fundado em 1993 a partir da fusão das sociedades financeiras de investimento Soserfin e Norcrédito – era conhecido como o banco do PSD. Serviu de encosto a ex-ministros e ex-secretários de Estado e a barões e baronetes do ‘cavaquismo’. O homem-forte do banco, José Oliveira e Costa, fora o todo-poderoso secretário de Estado dos Assuntos Fiscais nos Governos de Cavaco Silva. O segundo homem-forte – e o mais forte para muitas outras coisas – era Manuel Dias Loureiro, ex-ministro da Administração Interna.

Cavaco Silva, de resto, foi acionista da Sociedade Lusa de Negócios (SNL) proprietária do banco. Ele e a filha, Patrícia. Nos finais de 2008, já Presidente da República, endereçou a Oliveira e Costa ordens de venda das ações: 105.378 dele e 149.640 de Patrícia. Tinham comprado as ações a um euro cada. A SNL não estava cotada em bolsa e não havia preço de referência para os títulos. Oliveira e Costa mandou pagar 2,4 euros por ação. Um preço de amigo. Cavaco, ao sair da SLN, teve um ganho de 147,5 mil euros. Patrícia lucrou ainda mais: 208,4 mil euros.

 

Assalto a Rio Frio

Fernando Fantasia, homem tu cá, tu lá com Cavaco, unidos pelo mesmo berço natal, Poço de Boliqueime, e aparentados pelo sangue, associou-se a Emídio Catum, um tubarão do imobiliário e da construção na Margem Sul, que se movimentava pela banca com o à-vontade de quem estava na sua própria casa. Os cofres do crédito abriam-se-lhe de par em par – de tal maneira generosa que os credores ficariam a arder com uma dívida de 700 milhões quando, em 2019, se declarou insolvente. Mas, em 2004, Catum ainda era um empresário de raro sucesso. Tinha uma relação muito próxima com Oliveira e Costa. Nesse particular, Fantasia não lhe ficava atrás.

Os dois homens de negócios constituíram a Domurbanis com um único propósito: adquirirem terrenos que seriam infinitamente valorizados se o aeroporto fosse construído no campo de tiro de Alcochete. Foram ao BPN arranjar dinheiro. Oliveira e Costa nem regateou: o que os amigos precisassem! Levaram 35 milhões de euros. Fantasia e Catum, em 2004, atiraram-se como gatos a bofe a um lote de 1.440 hectares (o equivalente a outros tantos campos de futebol) da Herdade de Rio Frio, propriedade da família Lupi – outrora uma joia das casas agrícolas do país, com um valioso montado de sobro, vinha e adega, criação de gado e arrozais, agora a definhar na bancarrota.

A preocupação de Cavaco, coberto por um véu de respeitabilidade e solidez moral, em aconselhar o Governo a não se decidir pela Ota antes de avaliar a localização proposta pela CIP, o campo de Tiro de Alcochete, e em estudo por um grupo de especialistas da Universidade de Aveiro – acabava por beneficiar os investidores de Rio Frio.  Nem Fernando Fantasia, nem Emídio Catum cobiçavam a herdade pela aptidão agrícola. Eram homens do imobiliário. Não eram lavradores seduzidos pela terra fértil, mas negociantes interessados nas mais-valias geradas pela especulação por conta do novo aeroporto.

 

Campanha por Alcochete

O relatório final do grupo trabalho da Universidade de Aveiro – coordenado por Carlos Borrego, um dos ministros do Ambiente no tempo do ‘cavaquismo’ – concluiu que a melhor localização para o aeroporto era o campo de tiro de Alcochete. A decisão, conhecida no início do verão de 2007, apenas terá surpreendido os mais distraídos.

Cavaco Silva fora eleito há um ano e meio – e basta consultar os jornais da época para confirmar que o Presidente da República exigia ter uma palavra a dizer sobre a localização do novo aeroporto. “Cavaco fez campanha por Alcochete”, recorda ao Tal&Qual um antigo ministro de Sócrates. O Governo, em junho de 2007, anunciou a decisão de “analisar” a opção pelo campo de tiro. O Presidente rejubilou: “Fiz um apelo para um estudo aprofundado. Acho que é para isso que também existem as universidades: quando existe um assunto de interesse nacional, compete às universidades dar o seu contributo para esclarecer os portugueses” – disse, com um sorriso de orelha a orelha, em 18 junho, após inaugurar uma exposição na Culturgest, em Lisboa.

Quatro meses depois, em outubro, numa reunião no Palácio de Belém, Cavaco e Sócrates selam um pacto: a decisão sobre o aeroporto seria tomada pelo Governo em concórdia com o Presidente da República. Assim se fez. Em 10 de janeiro de 2008, Sócrates informou o país sobre a localização do novo aeroporto: o campo de tiro de Alcochete. O Presidente da República, naturalmente, concordou.

Já então os mercados financeiros davam sinais de fadiga. O volume de crédito fornecido pela banca, às carradas, aplicado na aquisição de imobiliário que em muitos casos não valia uma terça parte daquilo que custava – fazia crescer uma bolha, cada vez mais inchada, que um dia iria rebentar em grande estilo. A banca portuguesa, cega e surda aos sinais de alarme, continuava, imprudente, a abrir os cordões da bolsa do crédito. Quando o Governo se decidiu por Alcochete, já o avisado Emídio Catum, através da sua teia de empresas com sede em paraísos fiscais, tinha abocanhado o resto dos cobiçados 3.600 hectares de Rio Frio. Fê-lo com recurso ao crédito – um autêntico assalto à mão desarmada ao BPN e ao Millennium.

A falência do Lehman Brothers, um dos maiores bancos de investimentos dos Estados Unidos, foi a faísca que fez rebentar a bolha. O BPN – aflito com falta de liquidez e com a sua administração enredada em crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais – estoirou e foi nacionalizado. O Millennium tremeu, mas aguentou-se nas canelas. A construção do aeroporto em Alcochete foi adiada.

A falência dos credores, como a do universo das empresas ‘offshore’ de Emídio Catum, agravou a crise que varreu a banca.  A Parvalorem – empresa criada pelo Estado para onde foram varridos os calotes do BPN, a que se chama ‘ativos tóxicos’ – e o Millenium acabaram por ficar com Rio Frio. Constituíram uma empresa, em março de 2018, a Cold River’s Homestead, para onde passaram o domínio da herdade. A intenção era vender a propriedade e recuperar dinheiro.

A família Amorim, que precisa dos montados de sobro para o negócio da cortiça, comprou os 3.600 hectares da propriedade por cerca de 30 milhões de euros. Feitas as contas, entre aquilo que os bancos emprestaram e o produto da venda, resta um prejuízo (para a banca e para o Estado) à roda dos 70 milhões de euros – segundo uma fonte da Parvalorem.

Os Amorim não cobiçaram a herdade apenas pelos lindos e valiosos sobreiros que ocupam quase dois terços da vasta área de terra. Restam-lhes uns consideráveis mil hectares com o casario, que nos tempos de glória albergava as famílias dos trabalhadores da herdade, um magnífico palacete (habitado pela família Lupi d’Orey), cavalariças, adega, armazéns – um imenso património imobiliário que um precioso aeroporto ali a dois passos transformará em ouro.