DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Fomos infiltrar-nos nos Alcoólicos Anónimos

Não é um mundo secreto, mas é muito discreto — e as reuniões são quase como se vê nos filmes. Bebem café e chá e até fazem uma oração final de mãos dadas. “Os únicos amigos que tenho são vocês”, ouvimos a um participante
Isabel Laranjo

Passa pouco das cinco da tarde de um domingo soalheiro em Lisboa. Está quase a começar mais um jogo do Benfica, mas nada afasta oito homens e dez mulheres deste encontro — com hora e meia de duração, na cripta da Igreja dos Anjos. Aliás, a reunião repete-se todos os domingos e há encontros semelhantes um pouco por todo o país, aos domingos e não só.

À porta da igreja, enquanto esperam pelas 17h30, hora da reunião, os participantes conversam, animados, até porque já se conhecem. Mas eis que chega um novo ‘companheiro’: a repórter do Tal&Qual, que decidiu conhecer de perto os Alcoólicos Anónimos (AA). Nestas reuniões apenas são admitidas pessoas que julgam ter, ou têm, um problema com o álcool. Mais ninguém — e daí que a repórter tivesse optado por se infiltrar furtivamente, pois de outro modo nunca conseguiria contar o que lá se passa. A presença da participante dissimulada parece não causar estranheza a quem é assíduo. Aliás, se o leitor tem algum problema com álcool, pode ir, sem medos, ao encontro desta comunidade.

Quem já lá anda, incluindo os ‘servidores’ — elementos dos AA que irão moderar a reunião e tratar de outros detalhes, como a distribuição de bolinhos, chá e café — recebem de braços abertos a repórter não identificada. “Tratamo-nos por ‘companheiros’ porque fazemos um caminho juntos”, tinha explicado dias antes Olga, chamemos-lhe assim, membro da Comissão de Informação Pública dos AA — e também ela pediu para não ser identificada. O anonimato está na base desta comunidade que tece laços através da partilha de testemunhos, evitando assim, um dia de cada vez, o consumo de bebidas alcoólicas.

 

Com Deus e sem religião

A repórter entra como se fosse uma alcoólica em busca de recuperação. Joana, uma das ‘servidoras’, trata de a acompanhar, escadas abaixo, até à sala onde muitas histórias irão cruzar-se. Entrega folhetos informativos e dois pequenos cartões com uma oração, semelhantes a pagelas. Estará esta comunidade ligada a alguma religião ou seita? A repórter adverte: “Não tenho religião”. A ‘companheira’ explica que a palavra “Deus”, que surge escrita nos cartões, não significa que os AA sejam uma organização de cariz religioso. “Aqui ninguém é obrigado a nada. Empregamos a palavra ‘Deus’ conforme cada um a entender´”.

Na sala, as cadeiras estão dispostas numa espécie de semicírculo, frente a uma mesa, à qual irão sentar-se dois ‘companheiros’: um deles irá moderar o encontro, o outro irá partilhar o seu testemunho. É quase como tantas vezes se vê nos filmes — ou via, antigamente. O homem que desabafa, de visual descontraído, até mesmo ‘cool’, passou largamente dos sessenta e acabará por revelar que o álcool lhe levou quase tudo. “Tive uma firma, que acabei por perder. Chegava lá de manhã, via uns números nuns papéis, mas lembrava-me lá dos orçamentos que tinha feito!”.

A mesa do moderador é coberta por uma toalha azul, com o símbolo dos AA na frente. Em cima, o saquinho para um ofertório final e uma fotografia dos fundadores: o médico Bob S. e o corretor da Bolsa Bill W., que se encontraram no Ohio, EUA, em 1935. Eram alcoólicos e começaram a trabalhar com outros alcoólicos num hospital, até que um paciente alcançou a sobriedade. Estavam assim firmados os alicerces dos que são hoje os AA, que chegaram a Portugal, segundo os registos mais antigos, em 1956.

Naquela época, em pleno Estado Novo, o primeiro encontro formal de alcoólicos deu-se em Lisboa. Um deles era inglês e entrara em contacto com os AA no seu país de origem. Por cá conheceu um arquiteto português, Guilherme S., que tinha o mesmo problema. O inglês deixou de beber e os dois amigos começaram a reunir-se, com regularidade, ora em casa de um, ora de outro, apoiando-se mutuamente. Porém, a comunidade só começou a ganhar fôlego em 1972, ano em que nasceu o Grupo Internacional de Lisboa, na zona do Corpo Santo, junto ao Cais do Sodré — ironicamente, uma zona de bares e vida noturna, já naquela altura. Hoje os AA de Portugal estão espalhados por todo o continente e ilhas e alguns países africanos de língua portuguesa — e também existem reuniões à distância, via internet.

 

Medo da recaída

Estamos na Igreja dos Anjos. O moderador abre a reunião ao grupo, que é como quem diz, dá a palavra a quem a quiser usar. “Olá, sou a Laura e sou alcoólica”, começa uma mulher, dos seus 50 e poucos. Parece em pânico. “Tive uma recaída e voltei a beber. Tenho imensa vergonha, mas o meu marido deixa latas de cerveja por todo o lado e não é fácil”, revela. Contém as lágrimas, nota-se certa raiva na voz. “Ainda no outro dia entrei na cozinha e estava lá uma lata de cerveja”.

Laura (nome fictício, como todos nesta reportagem) tem medo de perder o emprego e os filhos. “Não falho com o que me pedem e lá até são bastante compreensivos”, afirma, referindo-se ao local de trabalho. “Mas sei que não posso voltar a falhar”. Quanto aos miúdos, um familiar já a ameaçou com uma “queixa” na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, conta.

Uma das regras é a de não haver diálogo entre os participantes. Quando um acaba de falar, começa outro. Laura termina. Em uníssono ouve-se na sala: “Obrigado, Laura!”. Sem delongas, toma a palavra um homem dos seus quarenta e muitos. “Olá, sou o João e sou alcoólico”. A partilha começa sempre assim, com cada um a assumir a sua condição perante a bebida. Muitos estão sóbrios há vários meses, ou até anos, mas afirmam repetidamente que o alcoolismo é “uma doença crónica com a qual temos de viver toda a vida, um dia de cada vez”.

João bebia demasiado. “Até aos 44 anos nunca fiz nada, nem sequer sabia ir comprar uma t-shirt. Continuava a achar que era um miúdo muito giro, até que me apercebi de que o álcool tinha tomado conta de mim. Foi quando vi que já era um velho sem graça nenhuma”, desvenda. Por agora está sóbrio. “Tive umas belíssimas 24 horas”. Mas tarde dirige-se à repórter disfarçada: “Volta mais vezes, isto resulta”.

 

Quem tudo perdeu

“Olá, sou o António e sou alcoólico”, começa outro membro. Por esta altura, dois servidores passam com bandejas de bolinhos, café e chá. A reunião prossegue com mais histórias de quem perdeu tudo. “Os únicos amigos que tenho são vocês”, desabafa António. A comunidade AA funciona assim: como uma rede de apoio social, onde os participantes desabafam e deste modo vão evitando os consumos. Não há mistério.

Seguem-se novas partilhas. Também há quem fique calado. É o caso de três mulheres, duas delas bastante jovens, ainda na casa dos 30. O moderador anuncia que “vai passar o cestinho para a coleta”. Pede-se dinheiro aos presentes. O ‘companheiro’, do alto da mesa, volta a abordar o alegado novo elemento. “Este dinheiro serve para pagarmos a renda da sala, para os bolinhos, o chá, o café, as nossas despesas correntes”. No fim, são contadas as moedas, à vista de todos: “Companheiros, esta coleta rendeu 17 euros”.

Ao fim de hora e meia, a reunião está prestes a terminar. Tal como numa missa, o ofertório faz parte do epílogo. Cada arruma a sua cadeira. A repórter imita os gestos e pensa em esgueirar-se. “Espera, vamos fazer a oração”, apela Joana, a ‘companheira’ do início do encontro. Forma-se uma roda em que todos dão as mãos e começa a ‘Oração da Serenidade’: “Deus, concede-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para distinguir umas das outras.” No fim, os braços, ainda de mãos dadas, vão acima e vêm abaixo. “Volta, que isto resulta!”, rematam em jeito de grito de guerra.