DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Lápis e papel, soletrar e pensar

Operações tão simples como soletrar, ler, escrever, relacionar e, em última análise, pensar estão em vias de extinção no nosso sistema escolar público. A campanha de estupidificação infanto-juvenil entrou em época alta no mês de Junho, quando os alunos dos 2.º, 5.º e 8.º anos de escolaridade foram obrigados a fazer provas de aferição em formato digital, apenas premindo botões num ecrã cheio de bonecos coloridos.

Sabe-se que a imbecilização das crianças de hoje servirá amanhã para transformar cidadãos conscientes em consumidores acéfalos. Este processo corrosivo vem avançando por etapas. Numa primeira fase, o sistema convenceu-nos de que não podíamos viver sem computadores; depois, levou-nos a rejeitar instrumentos elementares de literacia como o papel e o lápis; seguidamente, tornou compulsivo o uso de processadores em casa e nas aulas, em nome de um “progresso” abstracto que não se discute; chegou agora o tempo de a própria avaliação de conhecimentos ser reduzida à escala informática.

Para já, a experienciazinha fica-se por provas de aferição, que ainda não contam para a nota final. Mas isto não passa da cauda de fora: o gato escondido, bem mais sinistro, consistirá (mais depressa do que possamos recear) em impor exames digitais em todo o sistema de escolaridade.

A infantilização progressiva do ensino, cujos efeitos já hoje sentimos na baixa qualidade da nossa vida pública, só poderá produzir no futuro políticos, professores, jornalistas e gestores cada vez mais analfabetos. Disse-o recentemente António Carlos Cortez: “Enquanto não tivermos uma classe docente e um Ministério da Educação que coloquem o livro, a memória, a história, as humanidades, a literatura no centro do processo educativo, não estaremos a preparar elites que venham a governar o país com competência”.

É óbvio que dificilmente as elites de amanhã poderiam sair desta fábrica de autómatos que é a escola pública: só raros se destacam, enquanto o grosso do rebanho deambula por aí balindo a sua insuficiência. Em contrapartida, as famílias com posses continuarão a mandar os seus filhos para escolas de exigência onde realmente se ensina e se aprende a olhar, interpretar e compreender o mundo. Soletrando e pensando, naturalmente.

Sim, a descoberta do conhecimento pode incluir a experiência digital. Mas a educação não pode reduzir-se a garatujas coloridas num ecrã e a grunhidos monossilábicos.

Jorge Morais

Carta da Aldeia

Jorge Morais