Recebemo-lo na nossa redação, no Tagus Park. O passo, um pouco cansado devido a um problema de coluna, não acompanha a velocidade da cabeça – fresca e ágil. Comemorara 86 anos há uma semana. “Foi uma festa bonita, com filhos e netos. Éramos oito à mesa”, conta, arqueando um sorriso de quem encontra na família a alegria dos dias.
Nem sentados estávamos e já rasgava elogios a Cavaco Silva. Marcava, então, o tom da conversa: ironia atrás de ironia, cinismo atrás de cinismo. Foi ministro de Guterres. Hoje, se voltasse atrás no tempo, garante que despacharia a questão do aeroporto ainda no seu mandato. Como não o fez, tivemos que discuti-la. Na Ota? “Não necessariamente. Mas na Margem Norte com certeza”, mantém. Na Margem Sul, jamais. Afinal, só querem lá o aeroporto devido a grandes interesses imobiliários: “Salgado, Amorins e o próprio Belmiro de Azevedo”, aponta.
Tal como aponta para os interesses da terra, aponta também para os do céu: os da empresa francesa de concessões Vinci, neste caso, que “comprou a soberania aeroportuária do país” – um “grande favor a alguém”, favor que hoje, se pudesse, reverteria a todo o custo. Ainda apontando para o céu, vê nas estrelas um bom futuro para Pedro Nuno Santos. Gosta dele. Não obstante, caso fosse primeiro-ministro e o ministro das Infraestruturas e da Habitação emitisse um despacho unilateralmente – como fez recentemente –, convidá-lo-ia a demitir-se. Quanto à TAP: nem pública, nem privada – público-privada. Vê nela a primeira pedra para Lisboa se tornar um ‘hub’ no Atlântico Sul. Tempo, por isso, de descolarmos para a entrevista.
T&Q – O governo reuniu-se há dias com o PSD para debater a questão do aeroporto. Depois de Alcochete, Montijo, fala-se agora também de Santarém. Que lhe parece?
JC – Alcochete era apresentada como a grande solução, diziam que permitiria chegar a 100 milhões de passageiros, não sei bem em que século. Mas é uma má solução do ponto de vista nacional, ainda que acredite que seja uma excelente solução do ponto de vista dos interesses latifundiários.
T&Q – E que interesses são esses?
JC – São interesses imobiliários. Querem dar um enorme puxão para cima na especulação imobiliária dos terrenos envolventes. O que significou a mudança da Margem Norte para a Sul foi a capitulação do Estado perante interesses privados e poderosos. Aquilo favorece o eixo aeroporto-Comporta, mais essencial do que qualquer outro [risos].
T&Q – Mas quem são essas pessoas, exatamente?
JC – São os donos desses terrenos – que, no conjunto, representavam um grande núcleo de poder económico e financeiro. O BES, por exemplo, era decisivo para esse tipo de coisas. Toda a gente que trabalhou na administração pública sabe isso. Toda a gente sabia da influência que Ricardo Salgado tinha através de contactos políticos. Não era o único. Isto também tocava aos Amorins e ao próprio Belmiro de Azevedo, à época.
Em doze anos, desde que se optou por Alcochete, nunca conseguiram definir a travessia por TGV do Norte para Alcochete. A conclusão que se tira é que alguma coisa está profundamente errada. A razão por que Alcochete parecia interessante foi por não se contarem os custos de acesso.
T&Q – Há também quem diga que é um crime ambiental para o Estuário do Tejo…
JC – No mesmo momento em que se avaliou a Ota e Alcochete, a comissão encarregada de fazer o estudo do ambiental considerou Alcochete um projeto impossível devido ao impacto ambiental. Não há mitigações possíveis aqui.
T&Q – E a nova opção de Santarém?
JC – Acho que o grupo Barraqueiro, e os outros, foram encontrar uma solução a 80 quilómetros de Lisboa para fugirem à Vinci, que tem o exclusivo da construção aeroportuária num raio de 75 quilómetros em redor de Lisboa.
T&Q – Parece-lhe que estarão só a fugir da Vinci ou a opção Santarém trará coisas positivas?
JC – O que os promotores fazem e dizem é que existe mercado para isto. Eles financiam-se com o ‘pelo do próprio cão’, aliás como a Vinci, através de taxas aeroportuárias. Portanto, não têm problemas de financiamento. Dizem eles que podem investir mil milhões para uma pista que poderá ter 10 milhões de passageiros.
T&Q – Concorda com o processo de escolha de uma localização para o novo aeroporto?
JC – O projeto está a ser apresentado como se fosse uma fábrica de chocolates. A determinação da localização de uma infraestrutura que é nacional é uma clara incumbência dos órgãos de soberania, que têm o direito de avançar ou recuar. Admito, claro, que o Estado possa concessionar a obra, tudo bem. Mas isso é uma coisa. O que se passou com a concessão à Vinci é outra. Na altura, o Estado precisava de ir buscar umas massas e vendeu a sua soberania aeroportuária. Não foi só uma concessão de exploração. Foi mais do que isso.
T&Q – Foi prejudicial para todo este processo?
JC – Veja uma coisa: a Vinci quer fazer um aeroporto no Montijo para expansão rápida e quer, entretanto, fazer obras na Portela para a expandir. E diz: “Se quiserem que eu faça noutro sítio, e feche a Portela, então há imensas consequências”. Pedem uma indemnização para fechar a Portela e pedem o aumento da concessão por mais 25 anos caso tenham de fazer um aeroporto que lhes custe o triplo do que eles têm em vista ganhar com a continuidade da Portela.
T&Q – É o país na mão dos privados?
JC – É o país na mão de alguns privados, sim. Se a Vinci quer ter uma concessão com mais 25 anos, isso é uma venda de soberania absolutamente extraordinária. Quando o governo PS chegou ao poder, em 2015, devia ter renegociado a concessão. Foi completamente absurdo. Só por um grande favor é que se faz uma concessão de 50 anos sem obrigar, na própria concessão, a um certo investimento para a expansão aeroportuária. A orientação política na altura em que obteve a concessão era só uma: vamos sacar algum dinheiro porque precisamos é de dinheiro. Nessa altura, a Vinci ficou com uma única obrigação: aumentar a capacidade aeroportuária à medida que a procura fosse aumentando. Isto e dizer ‘ó menino, toma lá um chocolate e vai dar uma volta com a prima’ é exatamente a mesma coisa.
T&Q – Lembremo-nos de que este processo ficou marcado pelo famoso despacho de Pedro Nuno Santos, em junho, que viria a ser revogado por ordem do primeiro-ministro passadas poucas horas. Se fosse António Costa, tê-lo-ia demitido?
JC – Pedro Nuno Santos é um político com grande relevância no PS. Apesar disso, caso de facto tenha havido um incumprimento nos trâmites ministeriais, teria de sair. Se fosse primeiro-ministro teria esta posição, mas procuraria falar com Pedro Nuno Santos no sentido de ser ele a apresentar a sua demissão, em vez de o demitir.
T&Q – Há quem diga que Pedro Nuno Santos está demasiado à esquerda para o próprio PS. Concorda?
JC – Não. No campo da solidariedade e da ação social não está mais à esquerda seja lá de quem for: o PS ou está aí ou não está. Não há meios. Do ponto de vista de quotidiano, é um homem que parece ter uma visão bastante razoável dos princípios do PS. O Pedro Nuno Santos é objeto de uma campanha antiga que o considera anti-economia privada. Se me disser anti-economia neoliberal, isso é evidente. Mas anti-privado não. O Estado, bem ou mal, é o último garante da economia privada.
T&Q – E em relação à TAP, qual é a sua posição?
JC – Tem de se procurar uma forma de a TAP fazer parte de um grande grupo, explorando, em Lisboa, um ‘hub’ transcontinental do Atlântico Sul. Isso é perfeitamente possível de negociar porque sabemos haver candidatos interessados (tudo menos entrar no grupo Ibéria). O Estado, numa situação dessas, deveria negociar a venda de forma a manter prorrogativas especiais quanto ao seu voto dentro da estrutura acionista. Ou seja, não defendo uma privatização total, mas sim parcial, em que o Estado conservasse uma cota importante na TAP semiprivatizada.
T&Q – Se hoje, em 2022, voltasse a ser ministro, o que faria de diferente?
JC – Invertendo a sua pergunta: se hoje voltasse a ser ministro quando fui [1995], havia três coisas que faria diferente. A primeira seria ter pegado no assunto do aeroporto logo no princípio do governo: se assim tivesse feito havia levado o processo até ao fim e hoje estaria construído na Ota. A segunda seria fazer a Lei de Bases do Ordenamento de Território mais verde. Por fim, relativamente ao Porto de Sines, procuraria possíveis rivais para a Singapura – de forma a pressioná-la para se expandir, tal como se havia comprometido.
T&Q – E se voltasse a ser ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território no contexto atual, que faria?
JC – Voltando ao aeroporto, procuraria mais sítios na Margem Norte e não necessariamente na Ota. E quanto à Vinci retirar-lhes-ia a soberania aeroportuária. Não é admissível que uma empresa privada concessionária leve na concessão o direito de exercer a soberania. Dizem-me assim: “A Vinci pediria uma pipa de massa”. Muito bem, se fosse caso disso, ia para a guerra, não hesitava um segundo. O Estado português não pode estar nas mãos da Vinci.
Depois, corrigiria desequilíbrios no espectro regulatório do sistema rodoviário. Ainda, não aceitaria tão benevolamente o atraso do 5G – que já deveria estar pronto de acordo com as nossas responsabilidades europeias. Outra das coisas mais importantes, apesar de isso não ser da minha responsabilidade, seria despartidarizar a função pública. Gostava de ver uma função administrativa prestigiada, mas não estando sujeita, quase a 100 por cento, ao poder político.
Uma última mudança seria procurar um maior desenvolvimento e integração territorial, ligando o interior a uma aglomeração metropolitana de escala europeia e polinucleada.