DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

O incrível mundo das explicações

Prevê-se que em 2026 o mercado mundial das explicações valha uns espantosos 202 mil milhões de euros. É o chamado ensino sombra, que no nosso país já abrange quase 250 mil alunos do 1º ao 12º ano. Há quem defenda que a falta de qualidade da escola pública é responsável por esta explosão.
Henrique Pinto de Mesquita

O êxito académico é visto como espada afiada para cortar o pano da pobreza — não se duvida. Mas por causa disso as crianças andam a ser fustigadas para alcançarem sucesso escolar a todo o custo. Estudar, regurgitar, estudar. Tudo para que tenham um futuro radiante, mesmo que isso implique hipotecar-lhes o presente. Que pai ou mãe não quer que o filhote seja um geniozinho, o melhor da turma, estudante de vintes, ou, na pior das hipóteses, que passe de ano, ainda que à tangente? Fruto desta competição, os progenitores atiram os rebentos para o chamado ensino sombra: ao fim de não sei quantas horas de escola, as crianças vão para as explicações ou centros de estudo — onde os senhores explicadores voltam a empanturrá-las com as mesmas letras e números de que eles já se haviam enchido no resto do dia.

Com o novo ano letivo a arrancar esta semana, aquele rame-rame volta a estar no horizonte. E é o que há algumas décadas era apenas um serviço de apoio, que alguns professores no ativo praticavam nas horas vagas à mesa da sala-de-estar, é hoje uma indústria de milhões — consolidada e até com empresas cotadas na Bolsa de Valores. O relatório ‘Private Tutoring’, realizado pela consultora norte-americana Global Industry Analytics, indica que o mercado mundial das explicações atingiu em 2022 o valor de 146,1 mil milhões de dólares (aproximadamente o mesmo montante em euros). Mais: estima o mesmo estudo que em 2026 o valor suba para a 202 mil milhões de dólares.

O assunto é sério, como nos explica Alexandre Ventura, investigador da área na Universidade de Aveiro. “Dantes só havia os professores ou estudantes que davam explicações à sombra. Não declaravam e este era um complemento dos seus salários baixos”, o que continua a existir. Em paralelo há hoje gigantes mundiais das explicações como a japonesa Kumon, que já está em Portugal, com centros em Braga e Matosinhos, e que é cotada em bolsa.

O fenómeno, segundo Alexandre Ventura, é particularmente expressivo no Oriente. “A Coreia do Sul é o país campeão das explicações”, afirma. “Está-se em Seul e veem-se arranha-céus dedicados às explicações. Em Hong-Kong há explicadores que são superestrelas, com cartazes espalhados na rua. Na Índia, os muitos mestres e doutores sem colocação dão explicações ‘online’. Muitas vezes dão até explicações de inglês aos próprios ingleses”, afirma o investigador da Universidade de Aveiro. A Ocidente, em julho, o presidente americano, Joe Biden, assinou uma lei para criar um megacampanha de explicações aos alunos prejudicados pelos efeitos da pandemia (ver Caixa nestas páginas). E no nosso país, como é?

 

“Tornaram-se um hábito crónico”

“Há muita gente que ganha muito dinheiro com explicações”, começa nos dizer Catarina Gonçalves, fundadora do Explica-te, um centro de explicações em Grândola — que apesar dos seus curtos cinco anos de existência já acompanha perto de 300 alunos. “Há gente sem qualificação que não presta um serviço de qualidade e cobra preços exorbitantes”, garante, sublinhando que parte desta indústria “só esta preocupada em fazer dinheiro”.

Segundo Alexandre Ventura, em Portugal o ‘ensino sombra’ já representará entre 5 a 10 por cento do orçamento das famílias (na Coreia do Sul estima-se que seja 12 por cento). “Na minha geração não havia tanta procura”, nota Catarina Gonçalves, que com apenas 21 anos optou por dar explicações em vez de seguir a carreira de professora. “Não acredito que as explicações sejam uma doença crónica, mas tornaram-se um hábito crónico. Há crianças que começam no primeiro ciclo e vão até ao 12º ano com explicações”.

Além disso, os locais onde decorrem explicações servem para que os pais, cada vez mais ocupados a trabalhar, deixem os menores. Recorrem a estes serviços, que além do transporte e explicações, podem ainda oferecer refeições ou lanches. “Tenho pais que, se pudessem, pediam para que as crianças tomassem banho e dormissem lá”, ironiza Catarina Gonçalves. Definitivamente, as condições de vida das pessoas são cada vez menos propícias para a vida familiar.

Quando Catarina Gonçalves se formou, há cinco anos, já não se verificava o problema de excedente de professores — precisamente a razão, segundo Alexandre Ventura, pela qual houve uma proliferação de centros de estudo e explicações: “Há dez anos, tínhamos excesso de diplomados em ensino e por isso não havia colocação para todos. Assim, criaram centros de explicações — a maior parte deles domésticos e não declarados — nas suas salas ou gabinetes. Devido à procura, essas pequenas salas domésticas tornaram-se empresas”, explica o investigador.

Já Cristina Baptista, fundadora da Akademia, um centro de estudo em Lisboa com cerca de 100 alunos, vê na falta da qualidade do ensino a razão para haver uma indústria de explicações: “Deve-se à falta de qualidade das escolas, particularmente as públicas. Neste momento, é visível que as escolas não dão as respostas necessárias e os pais procuram alternativas. Criaram-se défices terríveis na aprendizagem”, argumenta.

 

“Família tem pouco tempo para os miúdos”

O fenómeno está pouco estudado em Portugal, sentindo-se falta de estudos atualizados. Um dos mais recentes pertence aos Ginásios da Educação Da Vinci, um dos maiores ‘franchising’ de centros de estudo do país — com 41 unidades e 5.074 alunos. Em 2019, a marca afirmava que 22 por cento dos alunos nacionais recorriam a apoio escolar — o correspondente a cerca de 244 mil alunos, entre o 1º e 12º. Notava o mesmo estudo que 70 por cento recorriam a explicações particulares, na sua cozinha ou sala. Estas explicações particulares representam um volume de faturação perto dos 200 milhões de euros anuais: um valor de que não resultam impostos para o Estado, uma vez que as explicações particulares não são reguladas.

Outro estudo, este encomendado à Universidade Católica do Porto pela Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP), também de 2019, concluía que 60 por cento dos estudantes do ensino secundário, 50 por cento dos alunos do 3º ciclo e 20 por cento dos do 1º ciclo frequentavam explicações. Números que preocupam a pedagoga Maria Emília Brederode Santos, que foi presidente do Conselho Nacional de Educação até junho deste ano.

“Há sem dúvida uma ‘escola sombra’ excessiva”, começa por notar ao T&Q. Apesar de admitir que, por vezes, as explicações possam “desbloquear certas situações”, considera os valores acima demasiados altos, notando-os também como “reveladores de uma sociedade em que a família tem pouco tempo para os miúdos”, muito porque “os horários de trabalho têm pouco em conta as necessidades das famílias”. Além disso, considera também haver uma “excessiva pressão social, sobretudo no secundário, para que os jovens tenham boas notas”.

Aponta, ainda, as consequências deste excesso de explicações: “Primeiro, é um fator que resulta em desigualdades no acesso ao ensino superior — uma vez que ter explicações requer algum desafogo económico. Segundo, a ocupação excessiva do tempo das crianças e jovens leva à sedentarização, falta de iniciativa e dificuldade em desenvolver a imaginação. Terceiro, resulta numa redução das suas capacidades de socialização: que são uma fonte muito importante de atividades não programadas”.

Questionada acerca de uma eventual excessiva exploração do ensino para fins comerciais, Maria Emília Brederode Santos sublinha que “numa sociedade como a nossa procurar lucro não é um crime.” Esta é “uma forma de comercialização da educação, mas não é a única”, diz, e “todo o ensino superior está com traços nesse sentido”. A pedagoga condena que a escola pública se possa aproveitar disso para relaxar o seu papel institucional: “A escola pública é para todos. Não deve promover nem precisar disso. Dos seus alunos só pode exigir um desempenho que seja capaz de promover”, afirma perentoriamente.

 

Lisboa, 02/09/2022 – Explicações online (Diana Quintela/ Tal e Qual)

 

Explicações ao povo irmão

A par das explicações presenciais, florescem também em Portugal a versão ‘online’ — que apesar da explosão durante a pandemia está ainda numa “fase embrionária” e “sem oferta significativa”, segundo Alexandre Ventura. O especialista acredita que tal se deve à tradição. “Os pais tiveram explicadores presenciais e, por isso, procuram o mesmo para os filhos. É a credibilidade do modelo no qual viveram”. Apesar da tradição, as explicadoras Catarina Gonçalves como Cristina Baptista veem este modelo como uma alternativa válida — e por isso apostam nele.

“As coisas foram acontecendo naturalmente. Por causa da covid tive de passar para online. Vi-me à beira de perder tudo e tive de fazer qualquer coisa”, desabafa Catarina Gonçalves. Um modelo que, para certas crianças, é preferível: “As crianças vivem para o mundo digital. Tenho miúdos que são desinteressados e que só têm resultados por estarem perto do computador”, descreve, afirmando que o aproveitamento ‘online’ é idêntico ao presencial.

Também a pandemia veio baralhar as cartas a Cristina Baptista. “Os últimos meses de 2020 e 2021 foram todos online. Alguns alunos permanecem assim, sobretudo os mais velhos. Há cada vez mais adesão do público às explicações online. Antes da pandemia já havíamos tentado e os pais fugiam a sete pés”, relata, dando razão à descrição de Alexandre Ventura. O modelo veio para ficar: a Akademia acaba de fazer uma parceria com o ‘site’ brasileiro ZeroDúvida — de ora em diante, as suas explicações online também terão procura do outro lado do Atlântico.

 

Quanto custa?

Em Portugal, o preço médio das explicações ‘online’ ronda os 15 a 17 euros por hora. Já presencialmente, no Porto e em Lisboa, esse valor é na ordem dos 25 euros. Por fim, em cidades mais pequenas, como Grândola ou Guimarães, o preço ronda 10 euros por hora. Matemática, Português e Inglês são as disciplinas mais procuradas.

 

Quem quer ser professor?

“Hoje, ser professor é pagar para trabalhar. Fazer quilómetros e quilómetros, estar assoberbado de trabalho e ser mais administrativo do que professor”. As palavras, bem elucidativas, são de Catarina Gonçalves, a jovem que com 21 preferiu abrir um centro de explicações em Grândola a ser professora. “O ensino está podre e ninguém quer dar aulas. Sou a prova disso. Podia estar na escola e não estou”, remata.

Se há quinze anos havia professores a mais, hoje há-os a menos. As disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa são as mais carenciadas. Ninguém quer ser professor e a profissão não se renova, muito pelas razões apontadas pela nossa entrevistada. Além da fraca remuneração, há também uma “fraca imagem social da profissão”, sublinha Alexandre Ventura: “Sabíamos que caminhávamos para o abismo e não fizemos nada. Agora chegámos ao abismo”.

Atualmente, grande parte dos professores complementa a carga escolar com explicações, duplicando assim o salário. Há, contudo, uma minoria que só vive das explicações. Arriscado? Certamente. Mas para grandes males, grandes remédios.

Biden anuncia programa nacional de explicações

O presidente dos EUA anunciou em julho que nos próximos três anos pretende contratar cerca de 250 mil tutores e mentores que, entre outras funções, deverão providenciar explicações aos jovens americanos. É preciso recuperar aprendizagens prejudicadas pelos meses de confinamentos durante a pandemia. Joe Biden quer que as explicações aconteçam três vezes por semana, com a duração de 30 minutos cada uma.

A contratação massiva está prevista no American Rescue Plan [Plano de Recuperação], o qual consiste num pacote de 122 mil milhões de dólares (cerca do mesmo valor em euros). Segundo o documento oficial da Casa Branca onde a decisão é apresentada, os alunos americanos estão, em média, dois a quatro meses atrasados na leitura e na atemática. Além da tutoria e das aprendizagens, o programa pretende ainda apoiar a saúde mental dos jovens americanos através de iniciativas ligadas à arte e à música. “Estudos comprovam que tutores e mentores de qualidade têm impacto positivo nas conquistas académicas, no bem-estar e no sucesso em geral”, pode ler-se no documento da Casa Branca.