Todos os dias, várias vezes por dia, o primeiro-ministro lê ansioso as previsões atualizadas do estado do tempo enviadas pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Não é um veraneante, de calções e chinelos, com receio de que o sol se esconda e lhe estrague a praia. António Costa segue com angústia a evolução da ameaça que se abateu sobre Portugal – uma vaga assassina, formada por temperaturas extremas, ar tão seco com uma tira de couro e ventos fortes sem direção definida, que transformou o país, do Gerês ao Algarve, num imenso braseiro.
A ‘tempestade perfeita’, hesitante em perder a raiva da semana passada, dá ligeiros sinais de abrandamento. As temperaturas têm baixado gradualmente, a humidade subiu um poucochinho, a ventania dá indícios de amainar. Mas o mapa de risco continua carregado de vermelho. As previsões que chegam ao primeiro-ministro não são nada animadoras. Os meteorologistas entreveem para estes dias, nalguns pontos do interior do país, principalmente na faixa de Santarém a Castelo Branco, temperaturas de 40 graus e, vindas do nada, rajadas de vento quente e seco. As condições para a propagação dos incêndios não dão tréguas.
O inferno de fogo a que o país assiste não terá fim. Pior: há-de piorar, ano após ano, alimentado pela vastidão de eucaliptais e pinhais que, a pouco e pouco, foram tomando conta do território. “A floresta autóctone – constituída por carvalhos, sobreiros, azinheiras, castanheiros, medronheiros, oliveiras – foi substituída por eucaliptos e pinheiros”, diz António Campos ao “Tal&Qual”.
O velho político socialista, que nunca deixou de ser agricultor e de amanhar as suas terras de Oliveira do Hospital, sabe do que fala: uma cintura de castanheiros salvou o seu farto pomar de macieiras bravo de Esmolfe de ser devorado pelos fogos de outubro de 2017.
As alterações climáticas, que a ciência unanimemente reconhece, estão a influenciar o estado do tempo: temperaturas extremas e ventos quentes e secos criam fogos incontroláveis. António Campos não tem dúvidas: “A mancha contínua de pinheiros e eucaliptos, ao contrário das árvores nativas, são o pasto ideal para as chamas alimentadas por condições meteorológicas cada vez mais gravosas”. O inferno não terá fim. O país está condenado à fatalidade dos fogos “se não voltar à floresta tradicional”.
O inimigo traiçoeiro
Portugal, em 20 anos, duplicou a capacidade de combater incêndios. Mas os sucessivos governos nunca investiram o suficiente no ordenamento do território. “Reforçámos, sem dúvida, a eficácia do combate aos fogos. No entanto, a floresta, que é a questão estrutural além do clima, continua a ser esquecida”, diz António Campos ao T&Q.
Falta tudo na maior parte da imensidão dos três milhões de hectares florestais que ocupam um terço do país. O cadastro não é atualizado desde os anos 50, abundam as leiras de terra de que se não conhece dono, ou que estão ao abandono, onde o mato cresce sem controlo. O Estado só é dono de dois por cento da mancha florestal – e nem a floresta pública é um exemplo de organização e método.
A instalação das estações de biomassa, destinadas à produção de combustível a partir de material lenhoso, é a única forma de tornar rentável a limpeza da floresta. Mas o programa está irremediavelmente atrasado: o Governo ainda não concluiu o projeto que já devia ter enviado para Bruxelas – e o cheque, à conta do Plano de Recuperação e Resiliência, só vai chegar lá para 2025.
Está nos livros que um hectare de terra não deve acomodar mais do que 1.400 árvores. António Campos sabe que há eucaliptais com quatro mil árvores. “Não é uma floresta, mas um bosque” onde o ataque ao fogo é missão condenada ao fracasso. Entre pinheiros e eucaliptos venha o diabo e escolha o pior inimigo dos bombeiros. Um pinheiro a arder é como uma tocha. O tronco racha de alto a baixo e o fogo propaga-se pelo veio de resina até à copa: as chamas batidas pelo vento quente e seco correm, altas e velozes, pelas copas dos pinhais – e nada as consegue travar. O eucalipto é de combustão mais lenta. Mas os frutos arredondados, pouco maiores que berlindes, são projetados em brasa floresta fora – e onde caem nasce um novo fogo.
O combate aos fogos, hoje, é uma ciência que os comandantes operacionais dominam. Os meteorologistas são os seus aliados imprescindíveis. Os mapas das previsões do estado do tempo identificam as regiões mais vulneráveis e permitem à Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil posicionar os meios à espera do inimigo. Mas o malvado, mais falso que Judas, nem sempre mostra os dentes onde o aguardam para lhe dar guerra. Por mais rigorosas que sejam as previsões meteorológicas, não se sabe, a régua e esquadro, onde vão ocorrer as ignições.
“Se não for dominado numa hora ou em hora e meia, com a floresta que temos, torna-se incontrolável”, diz ao T&Q António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. Não é apenas o desordenamento florestal que dá vantagem às chamas: “Sabe-se como é que o fogo se comporta em função da vegetação, do terreno e da meteorologia”.
Mas, como tem acontecido nestes dias de brasa, o vento seco, instável e errático, imprevisível, faz do fogo um inimigo imbatível. Ora está adormecido, ora explode em rajadas poderosas. Ora sopra numa direção, ora vira de rumo – e torna a virar, repentino, em reviravoltas sem aviso. É o caos. Foi o que se viu, por exemplo, no incêndio de Palmela. Desceu a encosta do castelo – e encaminhou-se, levado pela ventania, em direção à Quinta do Anjo. De repente, o vento mudou. As chamas foram empurradas direitinhas à serra da Arrábida. Não chegaram lá.
Quase 200 fogos por dia
O Instituto Português do Mar e da Atmosfera avisou que o país ia atravessar condições meteorológicas extremas. O Governo declarou o estado de contingência – medida que trava o acesso às zonas florestais, impede a realização de trabalhos com recurso a maquinaria, proíbe o habitual lançamento de fogos-de-artifício em festas nas aldeias rurais. O estado de contingência põe a proteção civil no grau de alerta máximo.
“O Governo fez o que devia ter sido feito para garantir a operacionalização do combate aos fogos. Resta saber se a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil soube responder da maneira mais adequada. Temos que refletir sobre isso”, diz António Nunes ao T&Q. “A questão técnica, ao nível da proteção civil, será discutida mais tarde”, garante o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses.
O ataque inicial ao fogo, e dominá-lo em hora e meia, é o grande desafio da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil – cuja principal força é constituída por bombeiros voluntários pertencentes às associações humanitárias. Há um número que está a intrigar os especialistas em incêndios florestais. Ao longo da última semana, ocorreram uma média de 175 ignições por dia – o equivalente, feitas as contas, a um fogo nascente a cada oito minutos. É um número elevado. Ainda assim, inferior ao verificado no passado.
Em anos anteriores, de acordo com relatórios oficiais, os bombeiros chegaram a enfrentar 300 e 400 ignições por dia – contra as 175 neste pedaço de época. Temos tido menos incêndios do que no passado. Mas a área ardida, até ao final do último dia 14, quinta-feira, segundo o Instituto da Conservação da Natureza, ia nos 30.413 hectares – um valor acima do registado em todo o ano passado: 28 mil hectares. A área da floresta já consumida pelas chamas atingiu, até 14 de julho, o número mais alto desde 2017, ano do trágico incêndio de Pedrógão Grande.
A maior parte das 175 ignições diárias na semana passada, ainda segundo os relatórios oficiais, foram no litoral – onde a vegetação é mais descontínua. Caso fossem no interior, em território da floresta contínua, “as consequências teriam sido ainda mais graves”, diz ao T&Q um comandante da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil.
As grandes áreas florestais do interior consumidas em 2017, diz a mesma fonte, “estão a salvar-nos” neste ano de condições meteorológicas extremas que projetam o fogo a uma velocidade raramente vista. As manchas de floresta reduzidas a cinzas há cinco anos ainda não tiveram tempo para recuperarem e voltarem a arder. “Daqui a meia dúzia de anos, o caso muda de figura – para pior”, avisa. O clima está em transformação. É elevada a probabilidade de Portugal vir a sofrer longas vagas de calor cada vez mais frequentes. “Se o país não mudar a estratégia para defesa da floresta”, o que está para vir não é nada bom.
A estratégia da ‘mãozinha’
António Campos defende uma nova política florestal. Reclama o regresso das árvores autóctones a compartimentarem e cercarem os barris de pólvora formados por manchas contínuas de pinheiros e eucaliptos. Mas o Governo não parece estar para aí virado. O primeiro-ministro, ainda na semana passada, no final da visita à sede da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, deu o mote para a estratégia que pretende seguir – a da ‘mãozinha’.
Costa explicou que a larguíssima parte dos fogos tem origem na “mão humana”, negligente ou dolosa. E mexeu ambas as mãos, didaticamente, como um mestre-escola, à frente das câmaras de televisão, para que todos percebessem que as mãos de cada um não têm vontade própria: depende de cada português salvar a floresta não lhe pegando fogo. Tem razão numa coisa: cerca de 98 por cento dos fogos florestais têm origem em ações negligentes ou criminosas – e apenas dois por cento são provocados por causas naturais. A palavra de ordem do Governo, repetida pelos serviços oficiais, passou a ser “vamos evitar as ignições”. António Campos aplaude a iniciativa, mas reclama muito mais: “É uma campanha louvável. Tem todo o meu apoio. Mas é insuficiente. O que é preciso é evitar que a floresta arda tão facilmente mesmo que alguém a queira incendiar”.
O Governo não se cansa de anunciar o reforço de meios para o combate aos fogos – nisso, observa o comandante operacional ouvido pelo T&Q, “gastam as palavras todas”. Mas não se lhe ouve uma sílaba que seja sobre o ordenamento do território e da floresta. Mesmo que se invista as maiores fortunas em meios de combate aos fogos, lembra, eles serão sempre insuficientes face à ameaça de fogos cada mais violentes e perigosos.
Portugal gasta todos os anos uma média de 50 milhões de euros com o aluguer de aviões e helicópteros de ataque aos fogos. O dispositivo aéreo deste ano foi apresentado pelo ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, como “o mais seguro e o de maior confiança de sempre”. É constituído por 41 helicópteros e 18 aviões alugados – a que se juntam quatro helicópteros e um avião de reconhecimento da Força Aérea. Desde 2019 que o Governo discute a aquisição de meios próprios. Decidiu, por fim, comprar 12 helicópteros, por 89 milhões de euros, e dois aviões ‘Canadair’, pesados, no valor de cerca de 60 milhões. O negócio é financiado com dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência e do Mecanismo Europeu de Proteção Civil.
A opção pelos ‘Canadair’ derrotou quem preferia os mais pequenos ‘Fire Boss’, idênticos ao que se despenhou, na última sexta-feira, pouco depois de abastecer na barragem de Foz Coa. O preço de um ‘Canadair’ dava para comprar dez ‘Fire Boss’. O primeiro tem capacidade para largar de uma só vez 10 mil litros de água sobre os fogos; os outros, concebidos para atuarem em parelha, transportam no conjunto cerca de seis mil litros. Os aviões ainda não aterraram – o primeiro chega em 2024; o segundo, dois anos depois – e já estão sob suspeita.
Talvez não fosse mal pensado “tornar a floresta muito mais resistente” ao que aí há de vir.