DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

O lado negro dos ecrãs luminosos

Há cada vez mais portugueses viciados em telemóveis, tablets, computadores. Procuram sexo, jogo, relações, jogos. Já há quem receba ajuda para se tratar destas “novas dependências”. Nos EUA os responsáveis pelas tecnologias digitais nem deixam os filhos tocarem em ecrãs. Eles lá sabem…
Henrique Pinto de Mesquita

João era estudante de Engenharia Aeroespacial. Entrou no curso com uma das mais altas médias nacionais. Mudou-se para Lisboa, vindo do norte do país, e pela primeira vez deixou de partilhar teto com os pais. A mesada era gasta como entendia, os horários eram livres, as refeições estavam por sua conta. Passou finalmente a ser dono de si. Nunca tinha sido um rapaz sociável e sempre gostara de jogos de computador. Sorte das sortes, agora já não tinha quem o mandasse para a cama. Como não tinha, não ia. As noites viram maratonas de ‘gaming’ e os dias eram passados a dormir. Fez um amigo chamado Uber Eats e ‘desamigou’ um outro chamado banho. Jogava e dormia, acordava e jogava. Estava viciado. No curso as notas caíram a pique. João ganhou peso e tinha a saúde mental feita em lama.

Como este caso, que é baseado na descrição clínica relatada ao Tal&Qual por uma psiquiatra do Porto, há muitos mais. A internet, sendo um universo infinito, tem riscos: e os portugueses, como muitos ocidentais, ganharam-lhe o vício — ou adicção, como se tornou comum dizer. Eis as cinco comportamentos ligadas à internet que a medicina recentemente considerou causadores de dependência: redes sociais, videojogos, sexo online, compras e jogo (apostas). E não podemos esquecer o consumo de pornografia e o ‘sexting’, ou seja, mensagens eróticas.

“O problema da adicção aos ecrãs está reconhecido a nível mundial”, começa por afirmar ao Tal&Qual a psiquiatra Inês Homem de Melo, que nos apresentou o caso clínico com que abrimos esta reportagem. De tal forma que uma das modalidades de dependência de ecrã — os videojogos — entrou recentemente para a lista com a Classificação Internacional de Doenças, o CID11, como o designam os especialistas. “A marca de existência de um problema é quando a vida começa a sofrer por causa disso. Quando a pessoa deixa de ter vida social ou começa a ter problemas no trabalho. Até quer jogar menos, mas não consegue”, explica a médica, que é psiquiatra no Hospital Magalhães Lemos e no Centro de Responsabilidade Integrada (CRI) do Porto Ocidental.

O tema também tem alarmado João Sardica, coordenador da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD) do Alentejo. Questionado acerca de uma eventual maior procura para o tratamento deste tipo de adicções, João Sardica nega-a. E aí é que está o problema. Sendo a procura residual, João Sardica entende-a como reveladora de uma “banalização em relação à utilização abusiva”. As pessoas sabem do vício, mas toleram-no em si mesmas. “Temos noção de que estamos perante a emergência de uma situação problemática que vai ter bastante impacto no futuro. Neste momento, apenas vemos a ponta do icebergue”, nota.

 

“O país não protege as crianças”

O nosso Serviço Nacional de Saúde contempla desde 2012 tratamento para adicções sem substância, ou seja para vícios como o dos ecrãs. Os tratamentos estão a cargo dos diferentes CRI, espalhados de norte a sul. Além disso, têm surgindo programas inovadores que procuram especializar-se nestas matérias. É o caso do Serviço de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Por “novas dependências” entendem-se especificamente aos cinco comportamentos causadores de dependência. Joana Teixeira, psiquiatra e coordenadora deste programa, nota uma crescente procura de ajuda para “novas dependências”, embora frise que o tratamento das dependências clássicas mantém uma procura muito mais significativa.

Apesar de o nosso SNS já oferecer terapias para estas situações, o Estado não atua na prevenção, considera Inês Homem de Melo: “O país não protege as crianças. Proíbe-lhes as apostas desportivas e as entradas em casinos. No entanto, dentro dos próprios videojogos pode-se jogar jogos de azar. A indústria dos videojogos conseguiu fazer curto-circuito a isto”. Refere-se a vários videojogos, como o muito conhecido Counter Strike: Global Offensive, onde o utilizador pode comprar objetos com dinheiro real transformado em virtual, objetos esses que por sua vez são autênticas ‘slot machines’ com as quais se ganha ou perde de alguns cêntimos a milhares de euros. As crianças, que já correm o risco de ficarem agarradas aos videojogos, ficam assim expostas a um novo potencial vício: as apostas.

Vamos a números. Um estudo do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) — antigo Instituto do Droga e da Toxicodependência — mostra que 58,3 por centro dos jovens que fizeram 18 anos em 2019 jogavam videojogos online. Ou seja, mais de metade dos jovens portugueses. Destes, 18,6 por cento admitiram jogar quatro ou mais horas ao fim-de-semana. Mergulhando nas apostas online, o número baixava mas ainda assim era gordo: 17,2 por cento dos jovens com 18 anos fizeram apostas online em 2019. Além destas conclusões, indica o mesmo estudo, em números redondos há maior dependência de internet entre o sexo masculino e nos jovens entre os 15 e os 24 anos.

O documento conclui que 97 por cento dos jovens utilizam a internet para as redes sociais e que 35 por cento deram os seus primeiros passos no mundo online antes dos 10 anos. Por fim, acrescentou SICAD num comentário ao nosso jornal, entre os 13 e os 18 anos os problemas decorrentes da utilização de redes sociais são maiores no sexo feminino, enquanto os problemas decorrentes das apostas online maiores no sexo masculino.

 

Leis para as aplicações?

Imagine alguém que prepara refeições para o mundo todo. E agora imagine esse alguém chegar a casa e não servir essa mesma comida aos próprios filhos, com medo que lhes faça mal. Isto acontece: só que o cozinheiro cozinha ecrãs. Em Silicon Valley, a zona tecnológica da Califórnia, nos EUA, dá-se o fenómeno de os criadores de tecnologia proibirem os seus filhos de utilizarem as tecnologias que produzem. Em suma, estes pais estão obcecados por manter os seus filhos longe dos ecrãs, como noticiava o New York Times em 2018. “Um pouco de tempo passado frente ecrã pode ser tão viciante que o melhor é as crianças não tocarem ou sequer verem estes retângulos brilhantes”, escrevia o jornal. E se o cozinheiro não serve a sua comida aos próprios filhos, por que haverá alguém de o fazer?

Daniel Pereira, consultor tecnológico que vive em Lisboa, não dá telemóveis aos filhos. “Por isso, eles não têm o hábito de pedir. Em casa há muita tecnologia, mas a única a que eles têm acesso é a televisão, e nunca depois de jantar. Utilizam o computador para as aulas de inglês online e quando acabam desligam-no. Nem sequer sentem falta”, relata-nos.

Trabalhando na área da informática, Daniel Pereira não podia estar mais dentro do assunto. É, por isso, perentório em afirmar que as próprias empresas tecnológicas, autoras de aplicações, plataformas e toda a parafernália digital, procuram viciar os utilizadores. “Os profissionais de Silicon Valley têm, dentro das organizações, psicólogos e psiquiatras que vão buscar os mecanismos de adicção mais básicos para viciarem as pessoas nas aplicações que desenvolvem”, descreve. Dá um exemplo: “Aquele processo de ‘scroll’ infinito [não parar de descer uma página na internet] é baseado em investigação segundo a qual quando não há um fim para algo o normal é ficarmos dependentes. Estamos a fazer ‘scroll’, sabemos que aquilo é assim, e não conseguimos parar”.

No entender de Daniel Pereira, vivemos já um problema de saúde pública. “Nos transportes públicos, na rua, a conduzir: as pessoas estão sempre agarradas ao telemóvel. Já não sabem estar a pensar na vida. Isto é um problema porque lhes reduz a criatividade e a capacidade de concentração. Cria-se uma carência que não permite que desenvolvamos o nosso potencial”, sustenta. Por estas razões, o mesmo especialista entende que os governos, ou a União Europeia, deveriam agir e proibir, ou limitar, a componente viciante destas tecnologias, tal como fazem com as substâncias.

 

Buracos brilhantes

Como seria de imaginar, a pandemia fez aumentar os consumos digitais. O próprio SICAD o nota, explicando ao T&Q que a “utilização de ecrãs é um fenómeno potenciado pelos confinamentos associados ao período pandémico”. Também a psiquiatra Inês Homem de Melo notou um aumento de pacientes no período pós-pandemia, tendo sobretudo sentido acréscimo daqueles que estavam viciados no jogo online.

A este respeito, a aplicação de encontros online Tinder — cuja utilização excessiva pode integrar a dependência de ‘sexo’ — viu o seu número de mensagens online crescer 19 por cento entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2021, ao passo que as conversas duraram 32 por cento mais tempo. Em 2018, segundo o El Mundo, um grupo de psicólogos e neurocirurgiões húngaros estudou o “uso problemático” do Tinder, atendendo a seis comportamentos: a compulsão, a influência no estado de espírito, o uso cada vez mais frequente, a síndrome de abstinência, o isolamento perante outras atividades e relações, e a recaída. Ou seja, os princípios de uma adicção. As conclusões foram claras: a principal razão para haver dependência do Tinder estava no reforço que a aplicação dava à autoestima dos utilizadores.

Até podemos não ter Tinder e preferir o velho romance que preenche os tempos livres. Mas não nos safamos dos ecrãs. Eles estão por toda a parte. Nas casas, nos carros, no trabalho, nas ruas. Em todo o lado, repetidos ao expoente da loucura, os buracos luminosos sugam-nos a vida. É um dos lados negros da pós-modernidade. Não há como fugir — temos de nos habituar. E evitar torcicolos.

 

O ABC digital

Há toda uma nova linguagem (uma ‘novilíngua’, como diria o escritor George Orwell) desde que os ecrãs tomaram conta das nossas vidas. É preciso estar a par dela para se ler a geração mais jovem — e por isso os psiquiatras tiveram de a estudar. É o caso de Inês Homem de Melo, que nos deixou alguns exemplos do novo dialeto digital, quase todo com origem na língua inglesa.

‘Sexting’ significa trocar mensagens sexuais através do telemóvel. É a junção do inglês ‘sex’ e ‘texting’. ‘Infinite scroll’ significa estarmos infinitamente a descer nos murais das redes sociais (ou noutra página da internet). Existe, ainda, o ‘cyber slacking’, que consiste em usarmos recursos digitais do nosso trabalho para fins que nada têm a ver com este, como por exemplo estar no computador do escritório a navegar no Facebook. Em português pode ser traduzido como ‘cibervadiagem’.

Surge também o ‘distracted driving’, conduzir ao mesmo tempo que se mexe no telefone. Uma condução distraída.  Outro termo cada vez mais comum é ‘digital detox’, que nada mais é do que uma desintoxicação do mundo digital, seja de telemóveis ou computadores.

Temos ainda o ‘phubbing’, que consiste em utilizarmos o telemóvel para ignorar alguém. É a junção de ‘phone’ (telefone) e ‘snubbing’ (afrontar). Há também o ‘FOMO’, acrónimo para ‘Fear of Missing Out’ (medo de ficar de fora). Traduz a ansiedade sentida ao vermos pessoas viverem momentos felizes nos quais não participamos — muito potenciado pelo Instagram e outras redes sociais. Por fim, talvez o vocábulo mais agressivo: ‘nomophobia’, a pseudofobia de estarmos sem telemóvel. ‘No’ significa não e ‘mo’ é abreviatura de ‘mobile’ (telemóvel). Ainda não é oficialmente reconhecida pela medicina, mas parece ter grande potencial.

 

 

Nota: A situação descrita nas primeiras linhas desta reportagem baseia-se em informações gerais e sob anonimato de que o Tal&Qual teve conhecimento através da psiquiatra Inês Homem de Melo, não devendo ser interpretada como um caso concreto.