Conta-se que quando Carvalho da Silva foi proposto para entrar na lista candidata à liderança da então Intersindical lhe prometeram que seria apenas por três anos, a duração de um mandato. Os três anos passaram a 35. E ao lado estiveram figuras marcantes do sindicalismo, hoje quase caídas no esquecimento: Kalidás Barreto, José Luís Judas, Manuel Lopes, Maria do Carmo Tavares.
Já reformado das lides sindicais, Manuel Carvalho da Silva foi um caso exemplar de longevidade sindical — eternização, segundo alguns. Ocupou durante 25 anos o cargo de secretário-geral da CGTP-IN (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional). Mais precisamente entre 1987 e 2012. Mas já em 1977 tinha sido eleito para o hoje extinto Sindicato dos Electricistas do Norte. O que totaliza a bela soma de 35 anos dedicados à causa.
Durante décadas o país teve inúmeros sindicalistas em idênticas circunstâncias. Figuras incontornáveis dos grandes sindicatos dominaram os processos de luta e de negociação com sucessivos Governos e patrões. Estavam agarrados à cadeira do poder, na opinião dos mais críticos. De repente, a paisagem começou a alterar-se. Hoje há novas formas de luta e novas lideranças, algumas das quais com ligações ao Chega e ao Bloco de Esquerda. O terreno era dominado por PCP, PS e PSD, mas já não é bem assim. Será que o sindicalismo por vezes descrito como “selvagem” vai ganhar terreno às centrais sindicais de outrora?
As figuras tradicionais perduraram décadas e isso deveu-se sobretudo à falta de quadros sindicais com experiência, segundo a professora universitária Raquel Varela, investigadora do ISCTE com especialização em temas laborais. “Fazer um bom sindicalista demora tempo”, corrobora José Abraão, da FESAP (Federação de Sindicatos da Administração Pública e de Entidades com Fins Públicos).
Aliás, a contínua perda de peso eleitoral do PCP foi a certa altura compensada pela mobilização sindical, área em que os comunistas sempre tiveram um peso decisivo. Mas a quebra de influência dos sindicatos, sobretudo nos anos a seguir à aproximação do PCP ao Governo através da ‘geringonça’, marcou o declínio global comunista. A saída de Arménio Carlos da liderança da CGTP, em Fevereiro de 2020, foi um sinal forte disso mesmo, se é que não apressou mesmo a substituição há escassos meses de Jerónimo de Sousa como secretário-geral dos comunistas.
Atento aos sinais, o partido de André Ventura não esconde que uma das vias para se implantar e crescer passa pela criação de um braço sindical, ideia que anda a ser verbalizada desde pelo menos o Verão do ano passado. O deputado Diogo Pacheco de Amorim, ideólogo do Chega, disse ao Observador que o partido quer um “movimento sindical próprio” para “garantir uma posição entre as várias classes profissionais”, principalmente numa altura em que a maioria absoluta socialista limita o protagonismo parlamentar das outras bancadas. No tom histriónico que se lhe conhece, André Ventura até cunhou uma frase: “As ruas são da direita desde o aparecimento do Chega”.
O piloto ‘chegado’ ao Chega
É assim que chegamos a Tiago Faria Lopes, de 45 anos, eleito em Novembro de 2021 para presidente do Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC), com 53% dos votos. Eis um exemplo dos novos rostos no palco sindical. Nascido em Lisboa, foi criado na Casa Pia e começou por estudar Contabilidade e Administração. Teve em permanência o sonho de ser piloto, mesmo quando jogava ténis de alta competição na Casa Pia. “Investi no total cerca de 80 mil euros, obtidos com créditos pessoais, na minha formação e em ‘type ratings’ (qualificação do avião) e posso dizer que cumpri o meu sonho”, resume ao Tal&Qual o dirigente máximo do SPAC, que entrou em 2007 na TAP.
No campo político, Tiago Faria Lopes define-se como admirador de um mundo empresarial justo e honesto, baseado no mérito. Está ligado ao Chega, pelo qual foi eleito membro da Assembleia de Freguesia de São Domingos de Rana, Cascais, nas autárquicas de Setembro de 2021. Mas garante que a sua direção sindical mantém uma fervorosa independência. “Temos membros de todos os partidos, religiões, clubes e géneros. Para nós o que conta é o mérito de cada um”, resume.
Benfiquista dos quatro costados, circunstância que o levou a aproximar-se de André Ventura, o sindicalista assume-se como sendo de direita, embora neste momento não se reveja em nenhum partido desta área. “Sei que os interesses políticos numa empresa como a TAP são constantes e usados como arma de arremesso, quando deveria ser o interesse nacional a falar mais alto. Por isso fazemos questão de separar muito bem o que são as opções de cada um do posicionamento do SPAC, que é rigorosamente apartidário, mesmo quando nos tentam empurrar para a greve”.
Sem querer alongar-se sobre o tema das alterações no panorama sindical português, Tiago Faria Lopes admite que estamos a assistir a algumas mudanças: “É natural”, diz. “O mundo também mudou e os sindicatos não são excepção. Dos casos que conheço, estamos a falar de líderes e estruturas que tentam dialogar e fazer o melhor pelos seus associados, independentemente das simpatias ou filiações partidárias”, afirma, realçando que tem como objectivo reverter o acordo temporário de emergência, firmado com a administração da TAP e com que se comprometeu eleitoralmente. Bastam dois mandatos de três anos. Depois disso, garante querer sair de cena.
O professor que já foi do Bloco
Outra figura em destaque nestes dias de turbulência sindical é André Pestana, coordenador do STOP – Sindicato de Todos os Profissionais de Educação. Assumindo-se como “o único sindicato na Educação com mandatos consecutivos finitos para os seus dirigentes”, o STOP foi fundado em Fevereiro de 2018 e há dias fez publicar uma actualização dos seus estatutos. Conseguiu nas últimas semanas o que poucos julgavam possível: reunir nas mesmas formas de luta várias profissões ligadas à escola, culminando numa megamanifestação em Lisboa, a 14 de Janeiro.
Se a limitação de mandatos defendida pelo STOP parece aludir à eternização de Mário Nogueira à frente da tradicional FENPROF (Federação Nacional de Professores, afecta à CGTP), já a afirmação feita há dias por André Pestana não deixa margem para dúvidas sobre o alvo das críticas: “Sou mesmo professor, é mesmo verdade”. O sindicalista desvinculou-se da FENPROF em 2017. Mário Nogueira, em tempos professor do ensino básico, já reconheceu que há “mais de vinte e tal anos” que não dá uma aula. Para bom entendedor…
O STOP considera que está a “incomodar poderosos interesses instalados”. E nomeia-os: “Governo, municípios e outros”. Diz-se alvo de “intensas campanhas de desinformação e calúnias, numa tentativa desesperada de tentar manchar esta luta inédita”, a qual representa “um novo tipo de sindicalismo” apenas controlado e decidido “por quem trabalha nas escolas”. Assim se lia num comunicado de 13 de Janeiro.
André Pestana, de 45 anos, tem sido politicamente conotado com o Bloco de Esquerda. Nasceu em Coimbra, filho de professores, e estudou Biologia. Nos tempos de faculdade, esteve na Associação Académica, onde se tornou amigo do também estudante à época Tiago Brandão Rodrigues, que chegaria a ministro da Educação de António Costa entre 2015 e 2022. Em 1999, o agora líder do STOP filiou-se no recém-criado Bloco de Esquerda. “No início foi uma lufada de ar fresco na política portuguesa, mas a forma como vêem o sindicalismo, com uma perspetiva de controlo do movimento sindical, levou-me a sair”, disse recentemente André Pestana ao Diário de Notícias. “Saímos cerca de 200 e tal e fundámos o Movimento Alternativa Socialista, que claramente tem como uma das linhas mestras a separação total dos sindicatos”.
Bombeiros próximos do Chega
Pedro Pardal Henriques é outro dos nomes da mudança. O advogado — inscrito na Ordem em 2017 e com escritório em Alenquer — notabilizou-se ao chegar todos os dias aos televisores dos portugueses como vice-presidente do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), durante o período de greve que provocou uma inusitada afluência às estações de serviço, em plena pandemia. Entretanto, o SNMMP foi extinto pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa e com sentença confirmada pelo Tribunal da Relação em Dezembro do ano passado.
Pardal Henriques integrou a lista do partido de Marinho e Pinto, Partido Democrático Republicano, às legislativas de Outubro de 2019, depois de um desentendimento público com André Ventura, líder do Chega, sobre um suposto convite para integrar a lista deste partido à Assembleia da República.
Atualmente, Pardal Henriques está ligado ao SNBS – Sindicato Nacional dos Bombeiros Sapadores, fundado em 2019 devido à regulamentação da carreira acordada em Julho de 2019, negociada pelas entidades sindicais existentes e pelo Governo — regulamentação que alegadamente não acautelou os interesses dos sapadores. O sindicato, com sede no Barreiro, assume-se como independente, mas fontes bem informadas dizem ao T&Q que o partido de André Ventura exerce forte influência no SNBS. Pardal Henriques não se mostrou disponível para falar ao nosso jornal, apesar de diversas tentativas de contacto.
Eles eram eternos (até ao dia…)
Uma das presenças sindicais mais assíduas nos média é a do coordenador da FENPROF – Federação Nacional dos Professores. O eterno Mário Nogueira, professor do primeiro ciclo do Ensino Básico desde o ano letivo de 1978/79, não dá uma aula “há vinte e tal anos”. Mas não consegue precisar o tempo exacto. “Estou ao abrigo da lei sindical, a tempo inteiro no sindicato, e o meu salário é única e exclusivamente o salário de um professor, como se estivesse na minha escola. Não tenho nenhum subsídio nem nenhuma vantagem acrescida”, garantiu em 2019 em entrevista ao Polígrafo. Nessa altura assegurou que estava no seu último mandato.
Acontece que em 14 de maio do ano passado Mário Nogueira foi outra vez reeleito para a liderança da FENPROF— com 90% dos votos. Portanto, ainda não voltou a ser professor. A suposta data prevista para deixar a FENPROFé agora 2025, quando o atual mandato cessar. Será desta?
A incrível persistência de alguns nomes no sindicalismo leva a que se fale em verdadeiras crises de sucessão. Uma fonte que conhece esta realidade por dentro, e que preferiu não ser identificada, disse ao T&Q que são vários os factores que impedem — ou impediram durante anos — mudanças frequentes de liderança. “Mas não é só na sucessão que há uma espécie de crise”, diz-nos. É que o próprio movimento sindical estará a atravessar um momento de menor fulgor: a qualidade dos quadros tem de ser assegurada e mesmo aumentada devido à crescente complexidade e precariedade das relações laborais. No entanto, muitas das estruturas dos trabalhadores portugueses tardam em conseguir dar a volta à situação.
Para além da precariedade dos vínculos laborais – que os sindicalistas da velha guarda detectam até no crescente uso pelas empresas da palavra “colaborador” em vez de “trabalhador” – o recuo da força sindical e a dificuldade em promover novos dirigentes deve-se, também, à crescente dispersão de sindicatos, à indiferença da grande maioria das universidades face ao universo do trabalho e do sindicalismo e à gestão de recursos humanos nas empresas, reduzida a aspectos meramente financeiros. “Que seja do meu conhecimento, existe uma única tese de doutoramento em Portugal em que no título consta a palavra sindicato”, conclui com alguma ironia a mesma fonte.
A ameaça de eternização de alguns sindicalistas tem uma explicação mais global. Segundo Raquel Varela, professora e investigadora de História Contemporânea, o modelo sindical criado desde o 25 de Abril “infelizmente não teve como critério ou preocupação fundamental a rotatividade dos seus dirigentes”. Para agravar esta falta de “discernimento original”, Raquel Varela aponta ainda dois factores que dificultam o rejuvenescimento sindical: “É verdade que a maioria dos sindicatos foi perdendo quadros. Por exemplo, a taxa de sindicalização era nos anos 80 de cerca de 60% e neste momento situa-se em 18% no sector público e 9% no privado. A consequência natural é que haja cada vez menos gente com experiência política suficiente para exercer essas lideranças. O campo de recrutamento estreitou-se drasticamente”.
Por outro lado, a grande maioria dos sindicatos dos países ocidentais “insere-se numa lógica política de concertação social, de mais negociação e de menos luta”, descreve a investigadora. “Isto acaba por privilegiar uma certa estabilidade dos dirigentes em nome desses compromissos efectuados com o Estado e com as empresas. Por outras palavras, os sindicatos acabam por estar inseridos numa lógica política e social mais ampla”. E Raquel Varela recorda que a longevidade de alguns dirigentes sindicais não é de modo algum um fenómeno exclusivamente português: “Em vários países europeus existem dirigentes há mais de 20 anos nos seus cargos, na Alemanha e em Inglaterra, por exemplo”.
“Quem me dera que a renovação fosse mais rápida”
Será que, a nível pessoal, o exercício da liderança sindical traz ganhos concretos que expliquem a tentação de muitos para se tornarem autênticos ‘dinossauros’ das lutas laborais?
Para o dirigente máximo da FESAP (Federação de Sindicatos da Administração Pública), José Abraão, “ninguém recebe mais dinheiro por ser sindicalista”. “É um trabalho totalmente voluntário, exercido a tempo inteiro. Que seja do meu conhecimento, não existe qualquer vantagem financeira. Pelo contrário. Ao estar longe da empresa é frequente que estes trabalhadores-sindicalistas percam regalias. Essa alegação de supostas vantagens financeiras representa uma visão totalmente errada, que é lançada para o espaço público para denegrir o movimento sindical”, alega.
Relativamente a ganhos simbólicos, derivados da exposição mediática e da relevância social e política inerentes aos cargos sindicais, José Abraão também os refuta. “Ao contrário dos políticos, por exemplo, quando um sindicalista se reforma acaba por desaparecer da esfera pública. Claro que um sindicalista também é um político, mas não faz política partidária”. Ou não devia, dizemos nós…
José Abraão foi vice-secretário geral do SINTAP (Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública) desde 2003 e secretário-geral a partir de 2013. Em 2016 foi eleito secretário-geral da FESAP e em 2011 chegou à Comissão Política Nacional do Partido Socialista.
Ainda quanto à difícil sucessão nos cargos dirigentes, o líder da FESAP é peremptório: “Quem me dera que a renovação fosse mais rápida. Só que demora o seu tempo fazer um bom sindicalista e as pessoas não se mostram disponíveis para este trabalho. É verdade que há cada vez menos pessoas com espírito de missão e a querer abdicar da sua carreira profissional em favor do colectivo. Pagam a sua quota e não se querem envolver na direcção do sindicato”. Já sobre o despontar de sindicatos à margem das grandes estruturas, José Abraão garante que “o aparecimento de movimentos inorgânicos não é a melhor forma de defender os sindicatos”.
A líder do STE – Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado, Maria Helena Rodrigues, eleita em 2013, afirma que qualquer alegação de um possível benefício pessoal na actividade de dirigente sindical é completamente despropositada. “É um trabalho muito difícil, as lutas são muito duras e o único retorno que conheço é quando conseguimos fechar um acordo que favoreça os trabalhadores. É este o nosso benefício e o nosso sucesso”, argumenta.
No entanto, a mesma dirigente admite dificuldades no recrutamento — logo, na renovação sindical. “Se um trabalhador não tiver já uma carreira profissional feita, é muito difícil que opte por trabalhar nos sindicatos porque isso lhe vai retirar espaço e tempo para se dedicar à sua profissão e a todos os aspectos inerentes. Tal só se verificará em casos de convicções muito fortes ou de pessoas com fortuna pessoal, cada vez mais raros. Logo, há cada vez menos trabalhadores dispostos a trilhar este caminho”.