Hoje há rabo de peixe. Quando falo de gastronomia, lembro-me sempre de uma blague cinematográfica passada num restaurante de luxo em que três excelentíssimos comensais pedem “aquele bife especial da casa”, cada qual com a sua recomendação: um queria o bife muito mal passado, quase cru; o segundo a pedir, queria, ao contrário, um bife muito bem passado; e o terceiro sublinhava que o seu (bife) não podia ser nem muito bem nem muito mal passado, tinha de ser num ponto intermédio de grelha.
O empregado, muito bem vestido, com uma jaqueta bordeaux, os bigodes retorcidos e um laço papillon preto numa camisa branca irrepreensivelmente tratada, sossegou os comensais: “Os senhores não se preocupem que os bifes virão exactamente como pretendem”. E pediu, com delicadeza, uns minutos de espera.
Chegado à cozinha, e espreitando pelo postigo, vociferou para o cozinheiro: “São três bifes!” — e, já se vê, sem qualquer tipo de recomendação.
Associo este desvelo aos treinadores de futebol que, nos treinos e nas palestras, tentam passar o maior número de informação possível, alguns vão a detalhes extremos junto dos jogadores e, entre estes, há os ouvintes que prestam atenção a tudo, há outros que retêm o que querem e outros que pensam para si próprios: “Deixa lá isso, nós resolvemos”. Assim como na estória dos (três) bifes.
Como no pugilismo: o treinador a dizer, ao cabo do segundo assalto, “ataca, dá-lhe pela esquerda”, “esquiva-te e aplica-lhe um uppercut” e o boxeur, já com a cabeça feita num sino de igreja, a ouvir zumbidos sem palavras.
Na vida e também na política há um longo corredor que separa aquilo que efectivamente é daquilo que parece. O bife que é pedido de uma certa maneira e chega de outra. Pior do que isso, e estamos na antecâmara da dissimulação integral, o bife que não é bife.
Ao futebol o que é do futebol e à política o que é da política não é apenas dialéctica conveniente. É um logro. Tudo o que se tem passado nos últimos meses nas relações entre o Presidente da República e o primeiro-ministro, em sede das comissões parlamentares de inquérito e no parlamento, tem sido um absurdo. O ‘caso Galamba” e tudo o que o envolveu fazem lembrar aqueles debates acesos entre as turbas do futebol e as suas cartilhas, nas quais se cruzam e atropelam, na esquina de cada acontecimento ou incidência mais particular, mentiras, meias-verdades e um tutti quanti de explicações absurdas que diminuem a ’aura democrática’ do País.
Com este triste episódio vivido no Ministério das Infraestruturas, a partir do qual e perante narrativas tão díspares o País fica perto de uma espécie de reality show, não faltando as pipocas para se tentar perceber quem é que chamou quem (SIS), quem bateu em quem e quem falou com quem, já não sei se aquele ‘momento Coldplay’ de António Costa não se ajusta, afinal, à tragédia que se abateu sobre este grande palco de representação que tomou conta do País e da sua ‘fauna política’, tão determinada em defender uma espécie de ‘fungagá da bicharada’…
A António Costa parece-me que está a acontecer aquilo que acontece amiúde no futebol, quando existe a convicção de que os respectivos protagonistas já deram tudo, em condições muito adversas, às instituições a quem deram o seu ‘tempo, suor e lágrimas’. Parece-me que o primeiro-ministro, cansado de tantas guerras, assim a modos da Teresa Batista do romance do Jorge Amado, disposto a esperar pela ‘chicotada psicológica’ imposta por Marcelo, já está na fase de procura da sua UEFA, isto é, de um cargo europeu que lhe permita outro tipo de respiração, menos ácida e até menos asfixiante. Assim a modos do que aconteceu com o presidente da FPF, Fernando Gomes — e outros presidentes federativos anteriores — que atapetaram o caminho para saírem das autoestradas nacionais.
A fotografia que ilustra este texto foi tirada no lançamento do meu último livro, ‘Mentiras Futebol Clube’, e traduz afecto. Afecto e — acho que posso dizê-lo — respeito.
Conheci o Vítor Baía tinha ele 15 ou 16 anos (fazemos 10 de diferença) e foi um daqueles miúdos que, na altura, me fizeram gastar muita tinta (abençoada tinta!), a elogiar as suas qualidades. Não me enganei e o Vítor tornou-se num grande guarda-redes.
Mais tarde tivemos muitas conversas, sempre com muito respeito um pelo outro, o Vítor manifestava-se preocupado com o rumo do FC Porto e muitos queriam vê-lo como alternativa a uma nova lógica de liderança no Dragão. O Vítor estava do lado de fora, mas a vida é um elevador, às vezes em cima, outras em baixo e, numa altura sensível para a sua sobrevivência, decidiu juntar-se a quem, antes, muito criticara, ao ponto de se tornar administrador da SAD, onde já estavam os pesos-pesados e o motor do aparelho.
Eu acho que o Vítor está numa daquelas fases em que o bife pode ser servido de qualquer jeito. Desde que alimente.
— Por favor: o que tem hoje para a sobremesa?
— Rabo de peixe!*
(*sem açúcar e sem canela)