Uber, Bolt e FreeNow
Quando há oito anos Lisboa se tornou a primeira cidade portuguesa com serviço Uber, explodiam oportunidades de negócio por causa dos turistas que se acotovelam por todos os cantos. Os taxistas acharam que a plataforma americana trazia concorrência saudável. O controverso Florêncio Almeida, que ainda hoje preside à maior associação de táxis do país, a Antral, chegou a declarar que a Uber era apenas “mais uma central de táxis”. Passou-se isto ao início, no Verão de 2014. As opiniões mudaram depressa, como se sabe.
Entretanto enfurecida, a Antral quis que os tribunais declarassem que a Uber estava ilegal. No aeroporto e na Baixa de Lisboa chegaram a registar-se cenas de pancadaria entre motoristas Uber e taxistas, com acusações mútuas de concorrência desleal. Cereja no topo do bolo: no ano passado viria a ser revelado pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) que a Uber quis galvanizar os protestos a seu favor. Teria um plano interno para “manter a narrativa da violência”, incluindo no nosso país, pensando que assim garantia o favor da opinião pública e o beneplácito dos reguladores públicos.
Não há dúvidas: em Portugal o transporte privado por geolocalização a partir de uma aplicação de telemóvel — foi esta a grande novidade criada pela Uber — tem estado debaixo de fogo quase desde o princípio. E o mesmo sucede em muitos países onde opera a multinacional fundada na Califórnia em 2009. As queixas começaram por ser de outros profissionais do volante. E depois também os motoristas se fizeram ouvir. Nos últimos tempos os passageiros juntaram-se ao coro — já não apenas contra a Uber, mas também contra a Bolt e a FreeNow, as outras duas plataformas que em Portugal prestam o serviço conhecido como TVDE (Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a Partir de Plataforma Electrónica).
“Infelizmente, o TVDE tornou-se uma grande fraude”, lamenta Fernando Fidalgo, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal (STRUP), que representa cerca de 200 profissionais desta área. Definitivamente acabaram-se as falinhas mansas e as amenidades a bordo. “Foram gorados aqueles objectivos iniciais apresentados à sociedade portuguesa de que o serviço TVDE seria uma boa opção como segundo emprego e que teria qualidade superior das viaturas e do atendimento em relação aos táxis”, acrescenta o sindicalista. “Hoje não há garrafinha de água nem rebuçadinhos para o passageiro, porque os motoristas vivem situações desesperadas. Já nem os carros são limpos diariamente, porque há pessoas sem brio a exercer a actividade. Hoje entramos num TVDE e somos recebidos por um motorista que não sabe uma palavra de português, o que põe em risco os passageiros em caso de acidente porque quem vai ao volante não consegue comunicar”. Por uns pagam todos.
Cancelamento é queixa principal
Da parte dos passageiros, o descontentamento deve-se sobretudo às viagens canceladas. Entre Janeiro e Junho deste ano houve mais de 300 reclamações junto da entidade reguladora do sector, a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT). Quase 90% diziam respeito à Uber, que tem a maior fatia do mercado TVDE. Os utentes pedem uma viagem pelo telemóvel, o motorista aceita, a transacção inicia-se — mas de repente o profissional do volante cancela o pedido. Porquê? Porque as plataformas TVDE impõem preços muitos baixos aos motoristas. Chegam a ser apenas três ou quatro euros para distâncias consideráveis, com cerca de 25% do montante a ir para as plataformas. Ora, como quem conduz só fica a saber o valor depois de aceitar o pedido dos passageiros através da aplicação, surge o cancelamento.
É certo que os cancelamentos não podem acontecer muitas vezes sob pena de os motoristas serem penalizados pelas plataformas, incluindo com a suspensão da actividade por alguns dias. Resultado: há motoristas que deixam o cliente à espera até este se impacientar e ter a iniciativa de anular. O que seria um pedido de viagem executado em escassos minutos pode prolongar-se por meia hora ou mais.
Por outro lado, os passageiros dizem não ter formas expeditas de contactar a Uber, a Bolt e a FreeNow quando as coisas correm mal. Sem atendimento telefónico, há relatos de formulários electrónicos que nunca mais acabam, por vezes em inglês ou num português macarrónico, e de intransigência das plataformas na análise das reclamações. Bruno Borges, director-geral da FreeNow em Portugal, distancia-se. Afirma que a empresa tem 160 funcionários no nosso país e que criou um serviço de conversação online “em que todas as respostas são personalizadas” — não se sabendo bem o que isto significa. A Bolt e a Uber não quiseram responder directamente.
Da parte dos motoristas — tanto os que têm carro próprio como os que trabalham para empresas inscritas nas plataformas (empresas designadas ‘parceiros’) — os lamentos dizem respeito às já referidas viagens abaixo do preço de custo e também ao autoritarismo das plataformas, que evitam recebê-los pessoalmente e decidem sem diálogo as suspensões e os preços.
“A nossa política de preços é ajustada regularmente”, justificou fonte oficial da Uber sobre os baixos valores. A FreeNow negou tais práticas: “Nunca teríamos uma iniciativa desse género. Só no último ano aumentámos o preço mínimo cerca de 60% e somos a única plataforma sem qualquer categoria ‘low cost’”, explicou Bruno Borges, sem dizer qual o preço mínimo. A Bolt, segundo o porta-voz Nuno Inácio, reconhece que “a escalada do preço dos combustíveis afectou diretamente” os motoristas, pelo que a empresa estará a dar “recompensas consoante as distâncias de recolha de passageiros” — o quê, em concreto, não esclareceu.
Dificuldades de expressão
A FreeNow, com casa-mãe na Alemanha, resulta de uma parceria entre a BMW e a Mercedes-Benz. Oferece serviços de TVDE, de táxi e de carro partilhado. Começou a operar no nosso país em 2019 e já está presente em mais de uma dezena de cidades, desde logo Lisboa e Porto. A Uber diz estar em “todo o território nacional”, menos na Madeira, e a Bolt também. A FreeNow alega ser a única das três com sede fiscal em Portugal, ou seja, a pagar impostos no território nacional — ainda que não queira revelar o montante pago no ano passado (as outras duas também não dizem).
Bruno Borges, da plataforma alemã, assume que as principais críticas dos passageiros são os cancelamentos dos motoristas. Mas há “apenas 2% de queixas”, refere, o que o “enche de orgulho”, até porque “nos últimos meses” não houve registo de “qualquer reclamação”. Se se refere a queixas que lhe chegam através da aplicação ou a queixas junto da AMT, fica por esclarecer. E como é que a empresa lida, na prática, com estes problemas? Não se sabe. O mesmo responsável acrescentou apenas que procura “oferecer um serviço de excelência”.
Da parte da Uber, foi-nos referido um “crescimento muito acelerado na procura”, sugerindo-se assim que os passageiros também são prejudicados por tempos de espera muito longos. E o que faz a Uber? “Estamos atentos ao ‘feedback’ que os nossos clientes disponibilizam sobre o nosso serviço e trabalhamos constantemente para tomar as medidas necessárias”, foi a evasiva que a empresa americana nos deu. Por seu lado, a Bolt — criada em 2013 na Estónia pelo jovem programador informático Markus Villig — não quis esclarecer que reclamações mais recebe e qual a resposta dada. Nuno Inácio, porta-voz da Bolt, informou apenas que os motoristas são avaliados em função de comentários anónimos deixados pelos passageiros através da aplicação do telemóvel. Aparentemente, a Bolt não tem escritórios entre nós. No site oficial a secção que descreve a empresa está em inglês e surge um anúncio de emprego: estão à procura de um gestor de vendas para a operação em Portugal.
A dificuldade em comunicar com as plataformas é muito frequente. Estamos perante aplicações com existência desmaterializada, muito distantes da lógica do século XX em que o comércio e os serviços tinham um rosto — e telefones e balcões de atendimento. Os clientes não conseguem falar de viva-voz com as empresas. Os motoristas também não. Com mais de 100 mil viagens TVDE todos os dias em Portugal, a balbúrdia vai-se instalando.
Mercado negro das licenças
Num parecer de Fevereiro último, a própria AMT sugeriu até que há cartelização neste sector — preços combinados entre as plataformas. A Uber rejeita. “A concorrência obriga-nos a inovar e a prestar constantemente o melhor serviço”, argumentou fonte oficial. A Bolt não respondeu. Além do mais, fervilham suspeitas de que muitos motoristas conduzem sem formação e certificação.
Antigos profissionais de TVDE garantiram ao nosso jornal que são traficadas em redes sociais da internet as licenças obrigatórias para esta função — emitidas por escolas de condução ou entidades certificadas, após pelo menos 50 horas de formação, como diz a lei. É voz corrente: há quem esteja ao volante sem cumprir os requisitos. Em 2021, o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) levantou quase 800 contra-ordenações deste género. A Uber defende-se e argumenta que a sua aplicação tem desde 2019 um sistema que “solicita que os motoristas tirem uma fotografia em modo ‘selfie’ antes de ficarem online e enquanto estiverem a fazer viagens” — para evitar fraudes.
O total de motoristas TVDE certificados em Portugal é de 46.177, mostram os dados de Novembro do IMT. Destes, há oito mil a trabalharem para a FreeNow, declara a plataforma, que neste momento tem a quota de mercado mais pequena. A Uber diz ter uma “larga maioria dos motoristas”, só não divulga quantos. Empresas licenciadas (os ‘parceiros’), são 12 mil. O Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal (STRUP), que pertence à FECTRANS e é afecto à CGTP, começou há cerca de três a incorporar estes profissionais. Além do STRUP, eles são também representados pela Associação Nacional Movimento TVDE. Ambas as entidades contestam o regime jurídico que enquadra o sector — a lei 45/2018, de 10 de Agosto, surgida já depois da chegada da Uber a Portugal e à espera de revisão desde o ano passado.
O Governo anunciou em Agosto que estava a “trabalhar na proposta de alteração”, considerada muito urgente pelo STRUP. Esta semana, questionado pelo T&Q sobre o ponto de situação, o Ministério do Ambiente, que tutela o sector através da Secretaria de Estado da Mobilidade Urbana, nada disse. Em princípio só no próximo ano há novidades, como decorre da proposta de Orçamento do Estado para 2023, aprovada na semana passada. A AMT, perante perguntas por escrito e vários contactos da nossa reportagem, não respondeu nem justificou o silêncio. Esta entidade reguladora é presidida desde o ano passado, com aprovação do Governo, pela ex-ministra e deputada socialista Ana Paula Vitorino.
Destaque
Uber, Bolt e FreeNow deram informações vagas ao nosso jornal através de intermediários e deixaram perguntas sem resposta, não se sabendo por exemplo quanto pagam em impostos em Portugal
É assim que as plataformas respondem às perguntas dos jornalistas
O sindicalista Fernando Fidalgo é taxativo: as plataformas de TVDE “têm escritórios em Portugal, mas não atendem o público”. Segundo este dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal (STRUP), há sempre “grandes dificuldades” em marcar reuniões com a Uber, porque a empresa “não mostra grande abertura”. Dificuldades semelhantes teve o Tal&Qual esta semana quando contactou Uber, Bolt e FreeNow.
As três corresponderam ao nosso contacto — mas nenhuma respondeu integralmente às 18 perguntas que enviámos por escrito. A Bolt remeteu-nos três parágrafos muito vagos, sem dar resposta directa a nenhuma das questões. A Uber respondeu a quase tudo, mas fugiu ao concreto. Exemplo: quisemos saber quantas viagens, em média, são feitas por dia em Portugal através da Uber. Resposta: “21 milhões de viagens em média por dia em todo o mundo”. Justificação: “Não revelamos dados mercado a mercado”. A FreeNow foi a mais transparente na partilha de dados, mas também evitou certos temas, como quando a questionámos sobre se há ou não combinação de preços entre plataformas.
As três revelaram uma linguagem burocrática com frases mais comerciais do que informativas, que em alguns casos pareciam traduzidas do inglês. Outro aspecto comum: as três têm endereços de e-mail para que a imprensa possa remeter perguntas, mas depois recorrerem a agências de comunicação para enviarem as respostas — ou seja, não há diálogo directo, mas por intermediários. Uma delas, a Uber, nem quis assinar o e-mail que fez chegar ao nosso jornal, mandando dizer que as respostas teriam de ser atribuídas a “fonte oficial” da empresa — sem ninguém a dar a cara.
Uber, Bolt e FreeNow foram unânimes numa opção: deixaram totalmente em branco a resposta à última pergunta do T&Q: “Considera que a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes e que Autoridade da Concorrência têm tido um papel adequado na regulação e fiscalização?” Há silêncios que falam.