DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Podem chamá-lo de tudo, menos gay

Já chamaram de tudo a Ivo Rosa no burburinho indignado causado por muitas das suas decisões. Suporta juízos, pareceres, observações e maledicências sobre a sua estrita atuação como juiz. Isso é para o lado que dorme melhor. Só não admite que o atinjam pessoalmente colando-lhe rótulos sobre a orientação sexual. Apresentou uma queixa-crime contra o procurador Casimiro Nunes
Manuel Catarino

O procurador Casimiro Nunes ficou a par da novidade através de um telefonema do Tal&Qual: o ex-ministro Manuel Pinho, a fazer-se de ausente, mas ouvido atento enquanto lhe faziam buscas na quinta onde vive recluso, escutara ao magistrado comentários sobre a orientação sexual do juiz Ivo Rosa. Casimiro Nunes deu uma gargalhada. Podia lá ser, uma coisa dessas, ele que até “não costuma falar com arguidos”. Perdeu a vontade de rir quando os repórteres lhe relataram a imprudência que Pinho jurava ter-lhe ouvido e se preparava para denunciar à Procuradoria-Geral da República. Segundo o ex-ministro, a contas com dois processos por corrupção, o procurador disse que o juiz Ivo Rosa sofre de um “trauma psicológico por ser homossexual”.

Manuel Pinho fez o que prometeu. Dias depois das buscas à sua casa de Gondizalves, nos arredores de Braga, em novembro do ano passado, participou do procurador. O Conselho Superior do Ministério Público levou o caso em devida conta. Casimiro Nunes enfrentou a averiguação preliminar convencido de que a denúncia iria morrer no arquivo. Enganou-se. O inspetor do Ministério Público nomeado para investigar a queixa encontrou indícios suficientes para instaurar ao procurador um processo disciplinar.

Casimiro Nunes, não vá o diabo tecê-las, rodeou-se de todos os cuidados para se defender. Conhecendo como conhece as manhas do Ministério Público, nunca fiando, constituiu uma advogada. Parecia ele que adivinhava. Ainda a debater-se com o processo disciplinar, enfrenta agora uma queixa-crime apresentada pelo juiz Ivo Rosa – que se considera difamado pelos desabafos escutados por Manuel Pinho.

Já chamaram de tudo a Ivo Rosa. O mais brando é que ele é “amigo dos arguidos” e “inimigo do Ministério Público”. Procuradores chamam-lhe o “juiz por si só” – a glosarem uma expressão que Ivo Rosa usa habitualmente para desfazer as teses do Ministério Público: este ou aquele facto, “por si só”, não indiciam isto ou aquilo. É para o lado que ele dorme melhor.

Ivo Rosa não se incomoda com o burburinho de indignação causado por muitas das suas decisões, não se deixa atormentar quando é contrariado pelos tribunais superiores de recurso, não se importa que digam que é o amigo benevolente dos arguidos e o inimigo feroz do Ministério Público. Faz da beca a sua carapaça. Mas não tolera que lhe chamem homossexual. “Ivo Rosa suporta juízos, pareceres, observações e maledicências sobre a sua estrita atuação como juiz. Só não admite que o atinjam pessoalmente colando-lhe rótulos sobre a orientação sexual”, diz ao Tal&Qual um amigo magistrado, que pede para não ser identificado.

Não foi nenhuma surpresa, pelo menos para quem o conhece, que tivesse apresentado uma queixa-crime contra Casimiro Nunes. “Sentiu-se difamado pelas presumíveis declarações do procurador”, diz a mesma fonte. O processo disciplinar contra Casimiro Nunes já vai avançado e o aparelho judiciário, fértil em zunzuns, sussurros, falatórios, é uma alcofa de segredos. Tudo se sabe. Talvez já tenha chegado aos ouvidos de Ivo Rosa que, muito provavelmente, vai ficar provado o insulto proferido pelo procurador – e isso pode ser utilizado no processo-crime.

 

“Gosta de uísque de malte”

Manuel Pinho – já acusado por Casimiro Nunes por corrupção e favorecimento do Grupo Espírito Santo – garantira em entrevista exclusiva ao nosso jornal que o procurador, enquanto lhe fazia uma busca domiciliária, descaiu-se com “comentários impróprios” sobre Ivo Rosa. Disse, segundo o ex-ministro da Economia, que as decisões do juiz são em resultado do seu “traumatismo por ser homossexual”. Casimiro Nunes, contactado pelo T&Q, desprezou a denúncia: “Não costumo falar com arguidos, muito menos era capaz de ter qualquer comentário desse tipo”.

Pinho não se ficou. “Ele diz que não costuma manter conversas com arguidos? Então, devo ser bruxo para saber tanta coisa dele. E tudo o que sei foi o que ele me disse sem que eu alguma vez tenha tido interesse em conhecer a sua vida”, afirmou o ex-ministro aos nossos repórteres (ver edição de 23 de novembro de 2022). O arguido ficou a saber que Casimiro Nunes pela-se por um uísque de malte enquanto vê televisão, enternece-se com a sua cadela de estimação, gosta de dar aulas, planeia vender a sua casa de Palmela para comprar uma habitação mais pequena e reforçar o pé-de-meia. Casimiro Nunes, afinal, é um homem muito falador – pelo menos com Manuel Pinho.

 

Guerra antiga

Não é a primeira vez que Casimiro Nunes responde perante o Conselho Superior do Ministério Público – ele e Hugo Neto, os procuradores titulares do processo sobre a corrupção de Manuel Pinho, no tempo em que foi ministro da Economia no Governo de Sócrates, para favorecimento da EDP e do Grupo Espírito Santo. O juiz de instrução, Ivo Rosa, recusou sucessivas diligências pedidas pela investigação, em 2017, contra António Mexia e Manso Neto, então, presidentes da EDP e da EDP Renováveis, e o ex-ministro Pinho.

Os procuradores recorreram das decisões do juiz para o Tribunal da Relação de Lisboa. O tom do recurso é duríssimo. Acusam Ivo Rosa de “displicência” e “desconhecimento da natureza do fenómeno em investigação”. Estranhavam o “aparente alheamento do juiz das nuances da criminalidade económico-financeira e a sua decisão de abdicar, deliberada e ociosamente, de analisar prova essencial à descoberta da verdade” – o que lhes parecia um “favorecimento injustificado” aos arguidos.

O juiz não gostou do que leu – e apresentou queixa à então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. Os procuradores, segundo Ivo Rosa, utilizaram “expressões manifestamente injustificadas e ofensivas da honra e do respeito”.

O Conselho Superior do Ministério Público instaurou-lhes um inquérito preliminar – mas o caso morreu aí, nem sequer deu origem a um processo disciplinar, e foram mandados em paz. Mais tarde, já em 2018, Casimiro Nunes e Hugo Neto tentaram afastar Ivo Rosa da instrução dos processos contra António Mexia, Manso Neto e Manuel Pinho através de novo recurso para o Tribunal da Relação: acusavam-no de prejudicar o Ministério Público. Ivo Rosa resistiu ao ataque, mas acabou por se desligar dos casos para ficar em exclusivo com a instrução da ‘Operação Marquês’.

Hoje, Ivo Rosa é um juiz sem tribunal. Ainda estava no Tribunal Central de Instrução Criminal (o ‘Ticão’), foi graduado em desembargador. Concorreu aos tribunais da Relação. Mas o concurso foi travado por dois processos disciplinares que ainda correm no Conselho Superior da Magistratura. A graduação em desembargador não lhe permite a colocação num tribunal de primeira instância. Escolheu sair do país.

Candidatou-se a procurador europeu, mas desistiu à última hora – porque é juiz do Tribunal Internacional Penal de Haia (dsde 2012, por escolha da Assembleia Geral das Nações Unidas, no tempo do secretário-geral Ban Ki-moon) e foi convocado para integrar o coletivo que está a julgar Félicien Kabuga, acusado de genocídio e crimes contra a humanidade no Ruanda.

 

Também tu, Alexandre?

O juiz Carlos Alexandre, o bravo herói da beca ao serviço da Justiça, símbolo do rigor e da competência, também tem as suas falhas. O desembargador João Abrunhosa, do Tribunal da Relação de Lisboa, apanhou-o em falso e, no último dia 2, participou o caso ao Conselho Superior da Magistratura para instauração de um processo disciplinar.

Segundo o desembargador Abrunhosa, Carlos Alexandre não respeitou o “dever de acatamento de decisões proferidas por tribunais superiores” – o que constitui uma infração disciplinar. O juiz de instrução meteu a pata na poça ao decidir, pela segunda vez, arrestar a pensão de Manuel Pinho, contra o que já tinha sido julgado pelo mesmo juiz do Tribunal da Relação de Lisboa.

Carlos Alexandre, na sua singular tendência para concordar com tudo o que lhe pede o Ministério Público, apreendeu, em 2021, a pensão de 26 mil euros ao ex-ministro da Economia. Esta decisão do juiz de instrução será contrariada por acórdão da Relação de Lisboa de que o desembargador Abrunhosa foi o relator. Mas os procuradores Casimiro Nunes e Hugo Neto, em outubro do ano passado, voltaram a insistir. Carlos Alexandre fez-lhes a vontade. Novo recurso. João Abrunhosa não foi brando na resposta. Mandou devolver o dinheiro ao ilustre pensionista com uma reprimenda ao juiz de instrução. O desembargador acusa Carlos Alexandre de “subversão” de uma ordem superior em desrespeito ao “dever de acatamento de decisões proferidas por tribunais superiores”, e participou da infração ao Conselho Superior da Magistratura.