Festeja-se o centenário do nascimento de Natália Correia com a munificência habitual num país onde é mais barato celebrar os mortos que cuidar dos vivos. A minha memória de Natália está para todo o sempre ligada à celebração de um morto e que me saiu, pessoalmente, devo frisá-lo, bem cara, ao contrário dos festejos habituais onde os elogios póstumos são inversamente proporcionais ao dispêndio com eles em vida.
O morto em causa, e a causa da minha desdita, era um cidadão de seu nome Gaio Julio Celso. Morto e enterrado há muito, as suas ossadas desapareceram ou encontram-se em parte incerta, sobrevivendo apenas o seu túmulo, provavelmente aproveitado pelas multidões de bárbaros cristãos, que sucederam no local, como salgadeira de porcos ou outra utilidade doméstica que tenham achado como conveniente.
O seu túmulo acabara de ser descoberto ou desenterrado perto de Sintra, e estava exposto em São Miguel de Odrinhas, num local onde existiu uma vila romana e que posteriormente viria a ser transformado num excelente museu onde a sua memória, assim como as de dezenas de outros antigos como ele se encontram exibids para a posteridade e onde, sempre que passo por lá e tenho tempo, vou amaldiçoar a sua memória chorando na sua campa pelo meu infortúnio.
Na altura, pelo final dos anos 70, trabalhava na RTP e marcaram-me um ‘serviço’, como se dizia, que era ir com Natália Correia fazer uma reportagem sobre o túmulo recém-descoberto de Gaio Julio Celso. Natália ia dissertar já só Deus sabe sobre o quê, e eu faria o enquadramento jornalístico. Ou mais ou menos.
Gaio Julio não era um cidadão qualquer. Tinha vindo da Dácia Superior, como diz na lápide, para trabalhar naquele fim do mundo romano. Tinha vindo portanto do que é hoje a Roménia, mas não era um imigrante romeno qualquer. Era uma pessoa importante, como os seus descendentes fizeram questão de frisar na inscrição funerária, através da qual a posteridade, incluindo eu e Natália, ficámos a saber que era filho de Gaio, pormenor importante para se perceber que não era um filho das ervas qualquer, pertencia à distinta classe superior senatorial, era administrador da Lusitânia e curador das estradas Emília e Triunfal. Devia, presumo, ser do PS da altura.
Eu vivia então em Colares, pelo que sugeri que nos encontrássemos lá. Odrinhas ficava a dez minutos, e não via o ponto de ter de me deslocar a Lisboa pelo IC19, que então era tão congestionado como hoje e ainda por cima estava em obras, para ter de regressar ao ponto de partida. Combinação feita, Natália Correia lá apareceu com a equipe de imagem e som, mais o motorista, e não faço já ideia porquê acompanhada também pelo António Perez Metelo. Uma multidão encafuada na velha carrinha da RTP.
Feita a reportagem, preparava-me para desaparecer quando a Natália, ou o António Perez Metelo, não me recordo, suplicaram que lhes desse boleia de regresso a Lisboa. Se regressassem no meio de transporte com que tinham vindo, teriam de esperar que a equipa da RTP arrumasse o material, o que era sempre um processo vagaroso e respeitando com minucioso escrúpulo as cláusulas do Contrato Colectivo de Trabalho, ou que fosse, que obrigava a não ter pressa em circunstância alguma. E parar para o almoço pelo caminho.
Cedi, com prazer e como habitualmente sem pensar nas consequências, e dirigimo-nos para o meu carro. Acontece que o dito não era propriamente o adequado a transportar estes dois pesos pesados da cultura e do jornalismo. Era um Alfa Romeo GT 1300 Junior, que tinha comprado em quarta ou quinta mão ao António Cartaxo por 30 contos, o que até nem tinha sido caro. Seriam, em valores de hoje, cerca de 4 mil euros. Mas era um dos mais belos carros jamais feitos pela Alfa Romeo, o que não é pouco, um dos primeiros trabalhos do mítico Giorgetto Giugiaro para a Bertone, e considerado um ícone do design automóvel. Os carros hoje em dia, como dizem as revistas da especialidade, já não são autorizados a terem esse aspecto.
Só que tinha um problema. Era, como todos os desportivos, baixo. A distância do chão ao chassis devia ser pouco mais de um palmo. O IC19 estava em obras de repavimentação. A camada superior do alcatrão tinha sido removida e as caixas dos esgotos sobressaiam do pavimento. Nas minhas idas e vindas diárias não era um problema, porque viajava sozinho ou, quando muito, apenas com um passageiro. E leve, se bem me recordo. E o que tinha de acontecer aconteceu. Com mais de uma centena e meia de quilos a bordo entre o GT 1300 Junior e as caixas de esgotos deu-se o inevitável confronto. Crash. Catapum. Desastre. O GT Junior, eu, a Natália e o Metelo seguimos em frente uns metros, mas para trás ficaram o motor, a transmissão, as engrenagens. Perda total, disse-me o senhor do seguro. E irreparável. Mais valia comprar um novo. Como era um carro velho, a indemnização do seguro nem dava para os pneus.
Fui ver quanto é que valeria hoje, na hipótese pouco provável, é certo, de o ter mantido até hoje em boas condições. Os sites da especialidade anunciam um a 51.218 dólares. Podem-se encontrar mais baratos, mas nunca por menos de 40 mil euros. Lindos, como sempre. Poesia em movimento, se é que essa imagem pode, mais ou menos, ser a memória e a homenagem possível da última viagem do meu GT 1300 Junior com Natália Correia a bordo.
QUINTA, 14
Que diria Natália Correia da ridícula pretensão por “desgosto estético” e “desaprovação moral” de um grupo de 37 “ilustres cidadãos” do Porto exigindo a remoção da estátua de Camilo colocada há mais de uma década em frente à Cadeia da Relação do Porto, onde o escritor esteve preso juntamente com a sua na época amante Ana Plácido, acusados de adultério, e do moralismo idiota da pretensão e da auto-assumida cátedra de juízes do gosto. É, e não sei como pôr de outra maneira, uma desastrada pudicícia.
Já passei por essa estátua dezenas de vezes e é-me completamente indiferente. Nem boa, nem má, nem bonita nem feia, e se não fosse esta polémica até pensaria que estava lá há dezenas de anos, mais um exemplar da estatuária figurativa que não aquece nem arrefece. Como o Saldanha ou o Marquês, ninguém vai lá acima ver se estão parecidos e parece que sempre estiveram lá.
O escritor, representado já velho, decrépito, à beira da cegueira e sofrendo as consequências irreversíveis da sífilis que o levariam ao suicídio, está abraçado na estátua ao corpo nu de uma jovem. Vá lá saber-se porquê, os “ilustres cidadãos” acham que a jovem desnudada representa Ana Plácido, o ‘grande amor’ da vida de Camilo. Não sei se já alguém reparou nas fotografias existentes de Ana Plácido, mais idosa é certo que na altura em que se apaixonou por Camilo, mas qualquer semelhança entre a senhora possante de carrapito dessas imagens e a jovem esbelta, e sem carrapito, da estátua é puro devaneio e elucubração de mentes perturbadas. Pornográfico, dizem. Dava, até dava o meu Alfa Romeo 1300 GT Junior, para saber o que pensaria Natália desta ilustre pudicícia.