DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Quinta, 6

Anda por aí muita gente com as metáforas trocadas desde que a ministra Ana Abrunhosa resolveu publicar um artigo nos jornais esclarecendo, com um título garrafal para que não passasse despercebido a ninguém, que a mulher de César é séria.

Como é que ela sabe, pode-se perguntar com alguma ingenuidade e uma boa dose de estupefação, uma vez que as fontes mais credíveis sobre as alegadas frivolidades da augusta esposa, na ausência da porteira que infelizmente não havendo uma imprensa de escândalos não passou à história, escreveram sobre o assunto muitas dezenas de anos após os factos, consumados ou não. Nunca se saberá, como nenhum português resignado às eternidades da nossa justiça no apuramento dos factos não deveria ficar surpreendido, se a mulher de César era mesmo séria, como afiança com gravitas ministerial a dra. Abrunhosa.

Mas qual das mulheres de César é que era séria? O referido casou três ou quatro vezes – as fontes divergem sobre a validade formal do seu primeiro casamento ainda adolescente com uma Cossutia, que não sendo de boas famílias patrícias foi devolvida à família, já com uso, presume-se. Casou depois e sucessivamente com Cornélia, depois Pompeia, e finalmente Calpurnia. Cornélia morreu sem deixar outro legado além duma filha, Júlia, e Calpurnia sobreviveu ao assassinato do marido dedicando-se como boa esposa e excelsa viúva a perpetuar a memória do finado e a procurar vingança sobre os seus assassinos. Era, dizem os antigos, uma mulher de temperamento humilde e tolerante para com as inúmeras e públicas facadas no matrimónio do marido.

Se a mulher de César era séria, já o marido dela não era. Dos muitos casos públicos e escandalosos que teve são célebres o “affaire” com Cleópatra, mas também com as esposas de gente importante do regime, incluindo Servillia, uma matrona casada com um dos seus principais apoiantes no Senado, Marcus Junius Brutus, esse mesmo que lhe deu depois a facada mortal e que esteve na origem da célebre frase que Shakespeare põe na boca de César ao ser apunhalado pelo homem que encornou: “Até tu, Brutus!”. Shakespeare não o diz, mas a presumível resposta de Brutus terá sido, mas isto é uma especulação embora plausível, que facada com facada se paga. O triângulo amoroso Júlio-Servillia-Brutus torna-se ainda mais interessante por, segundo os cronistas antigos, ter evoluído para um quadrilátero quando Servillia ofereceu ao amante os serviços da sua filha, oficialmente de um anterior marido, de nome Junia Tertia, embora os rumores que circulavam no fórum atribuíssem a paternidade da adolescente ao próprio Júlio César.

Esta fascinante mexeriquice sobre César e as suas mulheres e amantes todas é relatada com abundantes pormenores pelo historiador Suetónio nas “Vidas dos Césares”, um livrinho cuja leitura devia ser obrigatória em reuniões do conselho de ministros, para acertarem com as citações e metáforas e recolher proveitosas lições sobre as ilusões do poder.

Suetónio escreveu cento e cinquenta anos depois dos factos mas deve-se ter baseado em documentos anteriores, entretanto desaparecidos, porque uma versão semelhante é dada também por Plutarco, que escreveu mais ou menos na mesma época. E é Suetónio, e Plutarco, que estão na origem do equívoco da Dra. Abrunhosa e de todos os que andam por aí a defender as facadas na ética dos nossos ministros com a citação errada de que a mulher de César é honesta. O que Suetónio escreveu, sobre o divórcio de César com a sua segunda mulher, Pompeia, é muito diferente. Pompeia teria um admirador, Publius Claudius, que foi apanhado vestido de mulher a entrar nos seus aposentos com o intuito de a seduzir, o que foi mais um escândalo que acabou nos tribunais e resultou no divórcio. Durante o processo contra Publius Claudius – que foi absolvido, se querem saber – o procurador perguntou a César porque é que se tinha divorciado de Pompeia. César respondeu que não acreditava quer Pompeia lhe tivesse sido infiel. A questão não era essa. Era que não lhe bastava apenas que a sua mulher estivesse livre de culpa. “Todos os meus parentes têm de estar isentos tanto de suspeita como de culpa” (“meos tam suspicione quam crimine iudico carere oportere”).

Isto depois derivou para a frase actual, à mulher de César não lhe basta ser honesta, tem de parecê-la, mas perdeu-se o sentido original, mais forte. César não duvidava da honestidade da mulher mas divorciou-se à mesma. Talvez lhe desse jeito, mas o facto é que o sentido da metáfora é rigoroso e inequívoco. Em caso de dúvida, não escrevam artigos para os jornais a justificar-se. Divorciem-se, recomenda César.

É claro que seria absurdo pretender tão infausto desfecho para as trapalhadas em que os maridos, mulheres e progenitores dos nossos ministros os colocaram. Não é só a Dra. Abrunhosa com os subsídios do marido, é o dr. Nuno Santos com os contratos do pai e o dr. Pizarro com a mulher e a empresa de que é sócio gerente e se esqueceu de desgerenciar a tempo e um sem fim de histórias confusas que se arrastam por jornais e tribunais onde o menor denominador comum é sempre a confusão entre interesse público e interesse privado. Não faço ideia como é que isso se resolve, mas Shakespeare dá-nos uma pista quando põe na boca de Brutus a justificação para ter assassinado Júlio César: não é que amasse menos a César, mas amo Roma ainda mais.

Dias de cão

José Júdice