DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Quinta, 7

Passou uma semana desde que o ministro da Cultura pediu à Inspecção-Geral das Actividades Culturais que se deslocasse ao Cinema Monumental em Lisboa “muito brevemente” — entre aspas porque essa foi a superior urgência requerida — para avaliar se as quatro salas de cinema existentes no local, e encerradas ao público desde 2019, têm condições para funcionar. A determinação ministerial seguiu-se a uma carta aberta de várias “personalidades”, assim designadas por falta de melhor termo, entra as quais exibidores e distribuidores independentes, protestando contra a intenção da empresa detentora das salas do Monumental em transformá-las noutra coisa qualquer que lhe dê mais lucro. Alojamento local, restaurantes de ‘auteur’, lojas do chinês, não são claras as intenções. Como as suas quatro salas, as intenções dos proprietários estão às escuras. A intervenção do ministro é necessária porque, diz a lei, o encerramento de qualquer sala de cinema em Portugal exige o “execute-se”, neste caso literal, governamental.

Passada uma semana, e apesar da brevidade pedida, ainda não há notícias de que a IGAC se tenha deslocado ao local e, se o fez, qual o resultado. Percebo. Se me fosse pedido a mim, teria a maior das dificuldades em encontrar o Monumental. Pela simples razão de que não existe desde que em 1984 foi abaixo na fúria selvagem de destruição do património construído lisboeta, inaugurada ainda nos anos finais do marcelismo mas consagrada quando o eng. Abecassis presidiu aos destinos da capital, arrasando o charme antigo das Avenidas Novas, com os seus prédios de rendimento e moradias Arte Nova para as substituir por caixotes envidraçados do estilo arquitectónico dito ‘internacional’ ou, pior, pelos desvarios pictóricos do pós-modernismo projectado com peças de Lego. A culpa, claro, não foi do referido eng. Foi de todas as anteriores e sucedâneas Câmaras onde, com poucas excepções, a lógica construtivista faz da construção civil uma das principais fontes de rendimento para os cofres municipais.

O Monumental que eu conheci, como todos os lisboetas com idade suficiente para chorarem ao passar pelo mostrengo que agora ocupa o seu lugar, não era apenas uma sala de cinema. Era um templo. Com colunas a condizer, salões e ‘foyers’ — será que ainda alguém sabe o que isto era? — de amplos e confortáveis sofás para descansar nos intervalos e bares de extensos balcões e aparência solene para consumir já não me lembro o quê — bolas de Berlim provavelmente, ainda não havia pipocas —, escadarias monumentais e mármore por todo o lado e empregados fardados que controlavam as entradas e conduziam os espectadores com a solenidade de ‘garçons’ do Ritz encaminhando os clientes para os seus lugares. Ir ao Monumental era mais que ir ao cinema. Era um evento social, uma saída especial onde as senhoras se vestiam com as melhores roupinhas e os cavalheiros nem ousavam não usar uma gravata. Talvez os mais modernos um ‘col roulé’, mas ninguém usava jeans e muito menos ténis. Nem sei se deixavam entrar.

Era um templo não apenas no sentido monumental e arquitectónico, mas um templo do cinema, uma das poucas salas onde se podia assistir, como assisti em adolescente, ao esplendor pictórico irrepetível do ‘My Fair Lady’, a obra-prima de George Cukor e Cecil Beaton onde se podia quase cheirar a profusão de flores que enchiam o écran gigantesco. Ou entrar na esmagadora dimensão do deserto de ‘Lawrence da Arábia’ e sentir de tal maneira o poder do génio de David Lean que uma das graçolas da época era que ao sair do cinema se tinha de descalçar os sapatos para sacudir a areia. Ver estes filmes hoje na televisão, ou mesmo num dos muitos ecrãs miniatura que por aí existem nos Centros Comerciais, é a mesma experiência sensorial que visitar museus ‘online’ ou, numa metáfora mais acessível, saborear uns pezinhos de coentrada olhando para um programa de culinária na televisão.

Já nenhuma das grandes salas de cinema de Lisboa existe, à excepção do São Jorge, que sobrevive com dinheiros municipais. O Monumental e o Éden foram abaixo (neste último caso João Soares conseguiu salvar a fachada), no Condes servem-se hambúrgueres e o Império ainda funciona como sala de ilusões, mas religiosas. Outras salas históricas, como o São Luiz e o Tivoli, há muito que não passam cinema. E outras grandes salas de Lisboa, embora nenhuma com a mesma dimensão monumental, ou estão fechadas ou sobrevivem ainda, sabe-se lá como, como aquilo que sempre foram, cinemas de bairro.

O mundo mudou muito nos 80 anos desde a construção do Monumental, com os seus 1967 lugares, ou do Império, com 1676. A maior sala de cinema em Portugal actualmente tem 440 lugares. Ir ao cinema já não é uma actividade social, e muito menos lúdica como era numa época em que não havia mais nada que fazer a não ser ficar em casa a olhar para a RTP. Hoje há televisão a deitar pelas orelhas, e os cinéfilos têm canais dedicados ao cinema, além das plataformas de ‘streaming’, algumas especializadas em clássicos que não passam em mais lado nenhum.

Vai-se muito menos ao cinema que na época gloriosa das grandes salas. Em 1960 o número de espectadores de cinema em Portugal foi de 26.588.000. Parece muito, mas nada comparado com os 41.593.000 que encheram as salas em 1975, um fenómeno que ainda ninguém explicou, talvez pelo fim da censura e o aparecimento dos filmes pornográficos. Ou pelo desejo irreprimível de ver ciclos de Novo Cinema Finlandês, também é uma hipótese, académica é certo. No ano passado foram nove milhões e meio. Este ano, graças à Barbie, já são quase nove milhões.

A diminuição do número de espectadores não é consequência do desaparecimento das salas. É um fenómeno universal, e as explicações vão desde termos a geração mais bem preparada de sempre para olhar para o telemóvel até ao declínio do cinema como fábrica de sonhos que atraía multidões. Há hoje mais 130 salas em Portugal que nos anos de esplendor do Monumental. São 569 salas, a esmagadora maioria nos Centros Comerciais, o que explica que nas cidades onde não há ‘shoppings’ não há cinema, à excepção de cine-clubes e salas municipais que abrem quando abrem. São salas pequenas onde a experiência sensorial do grande cinema não é sacudir a areia dos sapatos, é sacudir as migalhas das pipocas do vizinho do lado.

Dias de cão

José Júdice