Não é por querer apontar o dedo a ninguém, mas neste caso é de elementar justiça publicitar o nome do leitor Carlos Almeida que aponta, em correspondência para este jornal, um lamentável equívoco por mim cometido na última edição do Tal&Qual quando me referi a D. Luísa de Gusmão, esposa do 8º Duque de Bragança e futuro D. João IV, como Filipa de Gusmão.
Como mais ninguém além deste atento e gentil correspondente chamou a atenção para esse indesculpável engano entre Luísas e Filipas seria talvez óbvio, mas possivelmente precipitado, saltar para a conclusão que Carlos Almeida é, em dez milhões de portugueses, o único leitor que tenho. Se assim fosse, honra lhe seja feita, mas penso que o caso é outro e mais complicado.
É um facto que cada vez menos pessoas lêem jornais. Nos últimos vinte anos a circulação de periódicos baixou três vezes. Em 2000 o número de exemplares de jornais e revistas publicados anualmente em Portugal era de 60 por habitante. Hoje é cerca de 20. Posto de outra maneira: no início do século vendiam-se por dia 468.000 jornais e revistas. Hoje vendem-se diariamente pouco mais de 100.000, dos quais apenas 75.000 são jornais, diários ou semanários. O que quer dizer que dos 9.011.878 seres da espécie “homo sapiens”com mais de 15 anos que têm constitucionalmente direito a exprimirem livremente as suas opiniões, apenas 8 em cada mil as fundamentam no que leram num jornal. Os restantes 992, e mesmo admitindo que muitos leiam o jornal que outro comprou ou fornecido gentilmente pelo proprietário do café, sustentam as suas convicções em fontes consagradas pelo tempo como o chofer de táxi ou a vizinha, ou o que ouviram no telejornal na noite anterior e que debitam ruidosamente como se fosse produto do esforço dos seus próprios neurónios. Os que abraçaram entusiasticamente a modernidade, e o número deve ser substancial nas faixas etárias mais novas, ou não fossem as gerações mais bem preparadas de sempre, vão buscar as suas informações à internet.
É um facto, e embora possa haver estudos que desconheço sobre a situação em Portugal, que parte substancial das pessoas recebe a sua informação sobre o que se passa, seja no mundo seja na sua própria casa, através dos meios digitais. Telemóvel, tablet, computador, substituíram hoje jornais, revistas, rádio e até livros como fonte aceite de verdades tão escritas na pedra como os mandamentos bíblicos.
Os americanos, que estudam estas coisas a sério até porque há muito dinheiro envolvido no financiamento e sustentabilidade dos “media”, traçam um retrato da situação deprimente – pelo menos para o futuro do jornalismo e sanidade mental das pessoas. 86 em cada 100 americanos informam-se através do telemóvel, tablet ou computador. Apenas 32 por cento através de jornais – e destes apenas um em cada dez escolhe informar-se em primeiro lugar num jornal – escritos por jornalistas mais ou menos competentes, e filtrados por chefes e directores com experiência e estatuto que assegurem a veracidade e rigor do que é publicado. É certo que, segundo um estudo do Pew Center, 63 por cento dos que vêm as notícias na internet as vêm em “sites” noticiosos como as páginas online de órgãos jornalísticos. Mas, inquietantemente, 53%, metade, vai buscá-las ao que se tornou costume chamar “social media”, talvez porque em estrangeiro parece mais moderno que a antiquada fofoquice de vão de escada.
O “social media” é, no grande esquema das coisas, um fenómeno recente mas cujas consequências na sanidade humana ainda estão por perceber – embora muitas sejam já evidentes como a propagação das “fake news” – aldrabices em português do antigamente – e opiniões absurdas. Para pôr as coisas em perspectiva, a importância das novas tecnologias no pensamento e formação da opinião publica não é nova. Entre a invenção da tipografia por Gutenberg por volta de 1450 e a impressão das “Teses” de Lutero em 1518, decorreu pouco mais de meio século mas foi o suficiente para mudar o mundo e pôr a Europa a ferro e fogo durante décadas. O Facebook nem 20 anos tem, mas a sua disseminação como fórum e fonte de informação e transmissão sem filtro de informações úteis e mentiras sem controlo é imparável e inevitável. As plataformas digitais e o “social media” fazem parte do quotidiano de cada vez mais gente embora, para pôr as coisas no seu devido lugar e numa perspectiva histórica, seja talvez interessante recordar que quando o Facebook começou, em 2004, já Ronaldo cá andava a marcar golos. O seu primeiro pela selecção foi em Agosto de 2003.
É uma tendência muito humana pensar que o mundo começou quando se nasceu, o que explica esta obsessão actual com as “fake news”. Por muito problemáticas que sejam actualmente as “fake news”, a distorção intencional ou invenção dos factos para atingir objectivos políticos, sempre existiu. Do nariz de Cleópatra ao milagre de Ourique, é só escolher, e suspeito que a célebre frase de D. Luísa de Gusmão de que mais valia ser rainha por um dia que duquesa toda a vida seja uma delas. Segundo historiadores que se interessaram pelo assunto, essa tirada é a versão popular e consagrada do que a duquesa terá dito. O que terá dito, a acreditar em D. Luís de Meneses, 3º Conde da Ericeira, que relata os acontecimentos, foi que D. João foi visitar a duquesa no quarto e esta, sem mais preâmbulos e como boa espanhola de sangue na venta – era de “ânimo muito varonil”, elogia o cronista – terá dito “mais acertado de morrer reinando do que acabar servindo”.
Terá D. Luís de Meneses testemunhado esta cena e ouvido as palavras varonis de D. Luísa? Se sim, como? Estaria escondido no armário? Ou ouviu-as mais tarde, relatadas com natural orgulho pelo próprio marido? Ou terá construído o episódio embelezando-o aqui e ali? Não se sabe e não há outras fontes que confirmem ou desmintam se a atitude varonil da Duquesa era “fake news” para embelezar a Casa de Bragança. O que se sabe ao certo é que o 3º Conde da Ericeira se suicidou atirando-se da janela num ataque de “melancolia”.