DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Sexta, 4

Vou fixar o nome de Rita Marques. Culpa minha, erro meu, distracção certamente, mas nunca tinha ouvido falar nesta secretária de Estado do Turismo, ou se ouvi entrou-me por um ouvido e saiu pelo outro sem se anichar no cacifo do hipocampo onde estas informações são arrecadadas para o que der e vier.  Sei por experiência própria que há neste nosso país gente capaz de feitos extraordinários memorizando coisas inúteis. Como saber todo o plantel do Barreirense na gloriosa época de 1967/68, ou de debitar sem hesitação todos os camisolas amarelas da Volta a Portugal. Admito assim, mais por crença cega nas inexplicáveis capacidades dos portugueses que por atávica prudência, que haja quem consiga a façanha de saber todos os nomes do elenco governativo, chefes de gabinete e assessores incluídos.

O primeiro-ministro talvez, afinal é quem os escolhe. Mas eu não.  Mas Rita Marques é um nome a fixar. Enquanto o primeiro-ministro, exercendo diligentemente a sua missão de pintar o país ainda mais cor-de-rosa do que já está, garantia na Web Summit que Portugal é “particularmente atrativo para os chamados nómadas digitais” e “para quem tem uma atividade profissional que não exija estar fixo num ponto e pode escolher”, a secretária de Estado do Turismo aconselhava alguma prudência. Podem escolher, sim, desde que não vão para Lisboa ou Porto. Que vão para o interior. Já há “nómadas digitais” a mais nas duas cidades. “Temos sido vítimas do nosso sucesso”, disse com inesperada franqueza Rita Marques, a pensar nos preços exorbitantes das casas.

Números divulgados no mês passado indicavam que há cerca de 200.000 “nómadas digitais” em Portugal, a maioria em Lisboa, Porto e Algarve. É um crescimento de quase 100% em relação ao ano anterior, mas é apenas uma estimativa. Ninguém sabe. A legislação sobre “nómadas digitais” só foi publicada no mês passado, e não há números oficiais. O que se sabe, ao certo, é que António Costa garantiu que vamos “acolher e acarinhar” os “nómadas digitais”.

Esse carinho, segundo a legislação publicada, é tanto maior quanto o dinheiro que cada nómada trouxer. Longe vão os tempos dos turistas de pé descalço. Para ter o estatuto de residência de “nómada digital” é preciso fazer prova de que se ganha 2.800 euros mensais. Passados 120 dias, poderão prolongar a autorização de residência dirigindo-se ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Se serão tratados no SEF com todo o carinho prometido é uma questão de fé. Irão para a bicha juntar-se aos 200.000 imigrantes que desesperam há meses para serem atendidos no SEF para conseguir ou renovar autorização de residência? Ou usando as suas competências digitais vão criar estratagemas tecnológicos para fazer 1.500 chamadas por dia, como a imigrante Cristina Wade, ou 30.000 em dois dias, como um outro chamado Pablo Bertho, para tentar marcar um atendimento no SEF? Poderão, já que têm mais dinheiro no bolso que qualquer imigrante pé-descalço, pagar aos inúmeros “prestadores de serviços” que anunciam a troco de 50€ garantir a marcação de um atendimento no SEF. Ou irão juntar-se às centenas de timorenses sem papéis acampados em Lisboa? E quando precisarem de ir ao médico? Bem sei que são jovens e saudáveis, mas e se precisarem? Vão para as bichas dos Centros de Saúde inscrever-se nos médicos de família para consultas daí a três meses, ou haverá um atendimento especial e carinhoso para doentes digitais?

Renato L. não é um nómada digital. É professor, e conta uma história edificante sobre a realidade do país não-digital no jornal “Região Sul”. A sua história é “verdadeira”, diz ele, mas que podia ser “de qualquer pessoa que queira ir trabalhar para Faro”. Foi colocado no concurso de colocação de professores em Faro para leccionar 14 horas semanais. Salário mínimo, portanto. Deslocou-se 600 quilómetros para procurar alojamento. Andou por agências imobiliários sem encontrar nada que pudesse pagar. Pelas ruas foi perguntando às pessoas se sabiam de alguma coisa para arrendar. Os preços eram, diz ele, estratosféricos. E os arrendamentos só até Abril ou Maio. A partir daí, rua, que os apartamentos eram para alugar a turistas. Ou nómadas digitais com 2.800 euros no bolso. Tentou alugar um quarto. E desistiu. O Algarve, conclui, ficará sem estudantes, sem professores, sem médicos, sem enfermeiros, sem pessoas para trabalhar porque não conseguem pagar alojamento, se o encontrarem. O Algarve, no próximo ano, vai precisar de 6.000 pessoas para trabalhar na restauração e na hotelaria, dizia hoje o presidente da associação do sector. E avisa que não há quem queira vir trabalhar porque não conseguem pagar o alojamento.

Há mais ou menos quarenta anos fiz uma reportagem para o Expresso sobre o ensino no Algarve. Quase todos os professores que não eram da região e lá estavam colocados pelo sistema dos concursos partilhavam casas humildes, e todos disseram a mesma coisa. Os arrendamentos eram só até à Primavera. Em chegando a Maio iam para o parque de campismo.

Quarenta anos depois o que mudou é que esses professores já não estão para aturar isso. Não vêm. Como não vêm enfermeiros, médicos, polícias, empregados de restaurante. Por mais banha-da-cobra digital e unicórnios atirados aos pacóvios, quem serve à mesa e faz as camas aos “nómadas digitais”, quem amanha a terra e apanha a fruta, quem trabalha nas obras ou vai à pesca, são cada vez mais imigrantes. E esses, explorados, enganados, abandonados em contentores ou ao relento nas ruas de Lisboa, têm tantas ou mais razões para reivindicar com orgulho o estatuto de vítimas do nosso sucesso.

 

Sábado, 5

A única coisa interessante na enxurrada de notícias sobre o novo secretário-geral do PCP é que, além de ter sido padeiro, entrou para o partido no ano em que acabou a União Soviética.

Dias de cão

José Júdice