DIRECTOR: MANUEL CATARINO  |  FUNDADOR: JOAQUIM LETRIA

Sexta, 5

É da idade. Só pode ser da idade, foi a única justificação que me serviu de auto-desculpa para não tomar a única atitude razoável que seria dizer “tchau tchau, desenrasquem-se, que está a pôr-se um nevoeiro que não se vê a ponta de um chifre dum bode – sou educado nessas circunstâncias – e ainda tenho 120 kms até chegar a casa”. Mas é claro que não podia fazer isso. É da idade, não ia abandonar três senhoras às dez e meia da noite em Vila Nova de Milfontes sem jantar e sem um acompanhante masculino para as proteger e dar aquele reconforto psicológico de saberem que estavam salvaguardadas pelo forte braço da masculinidade. Eu.

É claro que isto é treta. Nem eu, pelas mais recentes e fiáveis observações sou o Incrível Hulk nem as minhas três amigas precisavam dos meus préstimos para o que quer que fosse. Milfontes não é Chicago, embora promotores turísticos e autarcas bem se esforcem por dar uma movida comparável à da 24 de Julho em noite má, ou Albufeira numa noite pior, ao que da última vez que lá tinha posto os pés – há quase meio-século, reconheço – era uma simpática, adormecida e tranquila vilória com duas esplanadas e um areal deserto.

Por que razão estava em Milfontes às dez e meia duma noite gelada de Agosto, com a neblina a cair cada vez mais forte, sem ter jantado e com a perspectiva de ter de fazer os 120 kms das más estradas e curvas do litoral alentejano e do Espinhaço do Cão no meio dum nevoeiro cerrado, é assunto que mandaria o respeito pela paciência dos leitores que ficasse tão encoberto pela neblina como eu estava a ficar. Mas uma das minhas amigas estava de fim de férias, de regresso ao meio do Alentejo, quando o carro se avariou. Eram duas da tarde, no Algarve, e o concessionário da marca teve a amabilidade de dizer que lamentava muito, pedia muita desculpa, mas só podiam pôr o carro na máquina – para ver o que era, reparar era outro tema – daí a um mês. Falta de pessoal, férias do pessoal, covid do pessoal, pois, percebo o problema, mas estamos a fazer marcações só para Setembro. Deixe cá o carro, se quiser, e volte em Setembro. Não são só médicos que faltam no Algarve, também são mecânicos. E tenha um bom dia.

Havia um seguro, com direito a carro de substituição. Mas carro de substituição, carro de aluguer, dos milhões que andam por aí nas estradas a transportar turistas, nem um. Lamentamos, mas para hoje não é possível. Talvez amanhã, mas amanhã não pode ser, já deixei a casa, então um hotel, talvez uns quatrocentos euros por uma noite e é uma sorte se encontrar, a única solução seria voltar para casa de táxi. Pode mandar um táxi?

Podia, com certeza. Meia hora depois uma mensagem no telemóvel avisava que o seu motorista, o Marco, está a caminho e deverá chegar dentro de quinze minutos. Entretanto eram três e meia da tarde, quarenta graus à sombra, de fritar ovos ao sol, e ping, uma mensagem a avisar que o Marco tinha cancelado. Um quarto de hora depois, nova mensagem, era o Bruno que vinha a caminho, só 10 minutos. E ping, o Bruno tinha mudado de ideias, e mais um telefonema para o seguro e com certeza, não se preocupe, estamos a tentar, e tem de esperar, não podemos fazer nada a não ser tentar, e cinco minutos depois novo ping a anunciar que o José estava a chegar. Eram só mais dez minutos. Dez minutos passados, e que devagar que passam naquela frigideira, e do José nem sinal, e nova mensagem. O José também tinha mudado de ideias. Meia hora depois era o Celso que estava a caminho. Mas afinal não estava. E outra meia hora depois, era o António. E o Joaquim. E o Tiago. E o Miguel. E o Gabriel. E o Davi. E toda a lista de nomes próprios estava a chegar ao fim, e eram já sete e meia da tarde, quando comecei a ficar farto de passar o dia à porta da oficina à espera de um táxi mais raro que um obstetra em Agosto no Algarve, e disse à minha amiga, é pá eu levo-te a Milfontes, fica a meio caminho, pede às tuas amigas que te vão lá buscar.

E assim estava eu em Milfontes, de cavaleiro andante transformado em cavaleiro da triste figura, esfomeado, a tiritar, com um xaile emprestado pelos ombros, à procura de um sítio onde comer. Restaurantes abertos, sim, com bichas à porta e um simpático a perguntar se tinha reserva. Ai não tem, tente ali, e ali só com reserva, e de porta em porta no calvário dos perfumes a saírem das panelas para as mesas dos outros. O tempo ia passando, e a conversa mudou. Agora era a cozinha que já tinha fechado. Não sei quantos restaurantes há em Milfontes, e admito que não os tenhamos percorrido todos. Até que, milagre, havia um bacalhau com grão ainda disponível. O sítio era manhoso, mas um bacalhau com grão, para usar o cliché, era a última coca-cola do deserto. Venha ele. O bacalhau. E veio. Gelado. Quero dizer, mesmo congelado. Morno por fora, congelado por dentro. A solução consensual foi meter o bacalhau numa panela de água a ferver. E voltou. Já não estava congelado, estava intragável. E senti-me como um burro a mastigar palha. Mas um burro de férias em Agosto.

Dias de cão

José Júdice