Deixei de fumar na Praça do Giraldo, em Évora, numa manhã gloriosa de há quase dez anos. Estou inteiramente à vontade para escrever sobre o tabaco: conheço-o por dentro e por fora.
Sim, o tabaco faz mal à saúde. Sim, o tabaco mata. Não há uma única pessoa em seu perfeito juízo que questione as campanhas de aviso sobre os perigos do fumo. Sim, o consumo deve ser desencorajado, e até mesmo impedido em locais onde possa afectar a saúde dos não-fumadores. Isto é o que nos aconselham o bom senso e o respeito pelo próximo.
Só que o que passou pela cabeça do ministro Manuel Pizarro ultrapassa todos os limites da sensatez. Não me refiro aos condicionamentos ao consumo (matéria que os especialistas hão-de debater). Refiro-me à loucura, à insensatez, à imprudência, ao disparate, à tolice, ao desvario, à alucinação que é querer proibir, não o consumo, repito, mas a venda de tabaco em cafés, restaurantes, gasolineiras, bares e discotecas, casinos e outras salas de jogos, feiras, exposições e salas de espectáculos. Que o mesmo é dizer: em toda a parte. Era mais honesto proibirem liminarmente a posse, o transporte, o comércio, o uso e a mera existência de tabaco em Portugal.
Esta fúria legislativa é-nos imposta – disse o ministro da Saúde, encolhendo os ombros de impotência – por uma directiva da Comissão Europeia. Tive curiosidade e fui ler essa directiva. E não só não encontrei qualquer conselho de restrição à venda de tabaco, como lá vi, sem margem para dúvida, a sensata ressalva que protege as economias comunitárias: “Os Estados-membros (diz taxativamente o artigo 24.º da norma de Bruxelas) não podem proibir ou restringir a comercialização de produtos do tabaco ou de produtos afins”. Conclui-se, assim, que o Governo usou um falso pretexto para congeminar uma proposta fanática de lei – e que, no que à comercialização diz respeito, viola mesmo a directiva em que diz basear-se. Esta mentirola devia ser julgada em sede própria.
Era inevitável que uma tal proposta de lei tivesse contra si toda a gente. Da esquerda à direita, já a vi carimbada de “paternalismo”, de “regressão social”, de “reaccionarismo”, de “fascismo higiénico”, de “autoritarismo sanitário”. Só o velho ayatollah Francisco George se insurge contra aqueles que “colocam as liberdades individuais à frente de tudo”. ¿Então, meu caro George, já nos permitimos desdenhar assim das “liberdades individuais” constitucionalmente garantidas? Em que outro regime é que já ouvimos isto?
Repito: não está em causa fazer-se o que for razoável para desincentivar o fumo. O que se contesta é a teologia dogmática que, de tão cega, ignora o peso que o tabaco tem na economia portuguesa – do século XVII aos nossos dias, a ponto de por ele terem caído governos e perigado regimes. Estude, Pizarro, estude.
Dizem-me agora que estão muito preocupados com a nossa saúde. Deixem-me rir! Se não fosse por aquela manhã gloriosa em Évora, o que me apetecia era acender um enorme charuto e, retribuindo, atirar-lhes fumo para os olhos.